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“O BRASIL DOS HUMILHADOS DE JESSE SOUZA: desconstrução e renovação crítica” Patrícia Gouveia

I APRESENTAÇÃO


Este resumo comentado de “BRASIL DOS HUMILHADOS: Uma denúncia da ideologia elitista”, de Jessé de Souza, foi publicado preliminarmente no blog do ‘Núcleo do PT de Barcelona’, em junho de 2022. Apresenta-se sucinta biografia do autor, seguida da sinopse dos argumentos e discussões centrais. Em diálogo com ele, são tecidas considerações acerca de nossa provocativa situação social, buscando decifrar alguns intrigantes eventos e sinais emitidos na atual conjuntura. 

De forma original e competente, no livro o sociólogo enfrenta o provocador e urgente desafio de compreender a realidade sociocultural brasileira, à luz de uma reinterpretação crítica. Guardada as devidas proporções, um compromisso em completa sintonia com o que todos nós, dentro e fora do Brasil, precisamos e queremos, no momento urgente do ‘aqui-e-agora’.


II A SOCIOLOGIA CRÍTICA DE JESSÉ SOUZA: o autor e sua reflexão 


Ao longo das duas últimas décadas Jessé Souza vem se afirmando como um grande intérprete de nossa experiência sociocultural. Desde então, assumiu o desafio pessoal e acadêmico de construir fundamentos à formação de nova sociologia crítica, para compreender o Brasil e seu povo, revisitando versões institucionais dominantes que têm formado a opinião pública e informado o ‘senso comum’. Sociólogo, professor universitário, pesquisador, escritor e empreendedor, possui um amplo e variadíssimo currículo, reconhecido dentro e fora da Academia nacional e internacionalmente. Hoje está como sócio do Instituto Conhecimento Liberta (ICL) e participa do Conselho Editorial do Brasil 247, ambos veículos importantes à divulgação de suas ideias (e de outros) para um público mais amplo e comprometido com a defesa e consolidação de uma sociedade democrática e progressista. 

Possui uma produção acadêmica muito ativa, em sua busca por compreender e reinterpretar nossa experiência sociocultural. Desde a publicação da “A Modernização Seletiva” (2000), dedica-se à crítica e reconstrução do pensamento social brasileiro, dominante dentro e fora de nossos muros acadêmicos. Seguramente, “Brasil dos Humilhados” (2022) é um dos melhores ‘produtos’ de seu acúmulo reflexivo. É uma reedição recente do trabalho publicado em 2015 (“A Tolice da Inteligência Brasileira”). Mais que isso, é uma reescritura que conta com novos capítulos e com a supressão de outros. Munido de enorme vontade e capacidade analítica, retoma ideias centrais à compreensão da experiência social contemporânea - da realidade brasileira, em particular, às sociedades periféricas, em geral. Revisita intelectuais ímpares às Ciências Sociais, promovendo um encontro memorável entre personalidades de lugares, épocas e estatutos diferenciados. ‘Clássicos’ como Gilberto Freyre, Max Weber, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Roberto DaMatta, Talcott Parsons, Niklas Luhmann, Florestan Fernandes, Pierre Bourdieu, Axel Honneth e Charles Taylor; pensadores cujos célebres pressupostos, em parte, foram abertos e expostos pelo bisturi de Jessé. 

 “Brasil dos Humilhados” é um desses bens de grande valia que nos ‘afeta’ e nos incita a pensar o Brasil - a ciência, a política, a cultura, as relações interclasses e ‘novas-velhas’ formas de dominação. Seu ponto de partida é a institucionalização do pensamento social brasileiro - a problematização sistemática de quem somos, como país e nação. Em suma, as ideias nele veiculadas nos possibilita, sobretudo, repensar a nós mesmos.

Jessé ressalva que desde o período colonial, as representações e opiniões sobre o Brasil e seu povo abrigavam racismo racial, explícito ou não. Somente nos anos 20 e 30 houve um processo de transformação valorativa nas interpretações vigentes sobre o país e seu povo, onde intelectuais e políticos confrontaram as visões degradantes de época. Neste contexto, pontua o papel de Gilberto Freyre e Getúlio Vargas à valorização de nossa ‘brasilidade’. Como ‘sonhadores de um Brasil grande’, suas ideias e ações transformaram nossa realidade social, invertendo a malfazeja imagem dominante sobre nós mesmos, numa ambiguidade positiva” (p. 23). 

Como apontam muitos estudiosos do pensamento brasileiro, o mito do ‘bom mestiço’ freiryano (“miscegenation is beautiful”) redimiria nosso ludibriado povo negro e ‘caboclo’. Com perspicácia, Jessé relaciona a importância e o uso político de tais ideias por Vargas ao promover este potente arquétipo nacional, exaltando nossa plástica ‘forma de ser’ e projetando um Brasil maior. O ‘pai dos pobres’, diz ele, inaugurou a tradição política brasileira “antirracista e antielitista, seguida por Jango, Lula e Dilma”. Não por acaso, todos estes sonhadores com ‘um Brasil maior’, pontua, “foram acossados e vitimados por tratativas golpistas” (p. 26). 

Ao longo de cem anos, tivemos muitos outros ‘usos-e-abusos’ das ideias, como examina na primeira parte do livro - “O Racismo Científico que nos domina até hoje” -. Nele, critica pressupostos de autores nacionais canônicos, Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta, explicitando sua tese de que “o racismo científico, fundador do pensamento social brasileiro, é um pensamento politicamente conservador e sociologicamente equivocado” (p. 32-33). Este racismo dominante até hoje, desde 1930 e dentro e fora da Academia, garante “a manutenção do poder por uma elite espúria e a dominação e humilhação secular do povo. Ideias consensuais em vários círculos, de direita à esquerda, tornadas máximas científicas e políticas sobre o Brasil e os brasileiros” (p. 50). 

Sergio Buarque de Holanda, segundo Jessé, “partiu de Freyre e inverteu sinais positivos da brasilidade” (p. 50). Em forma de ‘ideal-tipo’, seu ‘homem cordial’ representou novo protótipo à nação: “um sujeito emotivo, dominado por paixões em suas escolhas e preferências (afetivas e pessoais). Produto ‘tipicamente brasileiro’, relacionado a seu oposto especular: o ‘protestante ascético’, racional, assertivo, positivo, sem dilemas e contradições, guiado pelas melhores considerações impessoais e comunitárias” (p. 54). Prerrogativa que daria munição ao ideário liberal que, na retórica, contrapõe o Estado ao Mercado; mas, na prática, ‘leva vantagens’ na relação entre estas instâncias. Apesar das inúmeras desigualdades no país, alerta, esse “homem cordial despossuía marcas e determinações de classe”, e ‘passava batido’ pelos muitos conflitos e contradições presentes em nossa sociedade” (p. 55-56). Para Jessé, o historiador recorreu “a abstrações simplistas e superficiais, descolada da realidade concreta. Um sujeito genérico contraposto a outro universal, cultural e moralmente superior, considerado campeão e guardião da democracia, da liberdade e da eficiência econômica” (p. 66). Ainda hoje, pontua, tais abstrações ‘vingam’ e naturalizam nossas diferenças estruturais. Numa espécie de ‘Síndrome de Estocolmo’, consagra-se o “brasileiro cordial (personalista) como pleno de defeitos e negatividades e valida-se seu nefasto personalismo como produto 100% nacional, que contagia a política e o Estado brasileiro (patrimonialista)”. 

Jessé denuncia que, desde então, “sob a falácia da moralidade pública e do combate à corrupção, nosso povo continua sendo portador de uma maldição cultural atávica: ser cordial, desonesto, ignorante e corrupto” (p. 64). ‘Trágicos tristes trópicos’, afinal, nesta dinâmica reeditam-se ideias que atualizam e replicam novos racismos (‘multidimensionais’). Em continuidade a tal perspectiva, J. Souza problematiza Raymundo Faoro e sua ideia do “patrimonialismo como ‘o genitor’ de uma sociedade não democrática, particularista, atravessada por privilégios e sujeita à corrupção crônica” (p. 71). Tal interpretação, igualmente, serviria à criminalização do governo Vargas e, ainda hoje, servem de munição aos ataques a outras gestões desenvolvimentistas. 

Para Faoro, o ‘problema nacional’ seria que ‘desde sempre’ fomos governados por quem privatiza a política e defende seus próprios interesses e privilégios. Graças à nossa ‘herança lusitana maldita’, caracterizou “o Estado brasileiro como interventor e inibidor do florescimento de uma comunidade civil livre e empreendedora” (p. 72). Jessé repudia esses argumentos por serem “anacrônicos e a-históricos, apreendendo transformações socioculturais de maneira teleológica, simplificada e esquemática” (p. 77-78). Ao contrário do que reza ‘Donos do poder’ (1958), afirma, “a escravidão foi o dispositivo efetivo que estruturou nossa experiência social. Portanto, nossa estrutura societária não foi lusitana, pois tal sistema não existia na ‘terrinha’. Segundo ele, “todos brasileiros foram criados pela escravidão, seja como escravos ou como senhores” (p. 144). Como a ‘mãe que nos pariu’, “ela fundamentou nossa transmissão cultural, via família, escola, justiça, economia, política etc.” (p. 78).  Igualmente, pontua, a “corrupção não é inerente, particular ou exclusiva do Brasil” (p. 80). Ao culpar o patrimonialismo como fonte do subdesenvolvimento brasileiro, “Faoro dissipa um corpo de desigualdades atávicas abissais e os conflitos generalizados que ela mesma produziu, sem criticar o próprio racismo nela contido” (p. 89). Este sim, considera, é o responsável por nossas misérias e atraso.

Nesta mesma ‘pegada’, examina Roberto DaMatta, ‘o antropólogo de plantão’ (conferencista, filósofo, consultor, colunista de jornal e produtor de TV), pai da “sociologia do jeitinho brasileiro”. Como Buarque e Faoro, DaMatta considera “a sociedade brasileira ímpar em sua dualidade constitutiva, marcada por formas de interação relacional, alicerçada em instituições como a família, as amizades e a troca de interesses e favores” (p. 94). DaMatta elegeu categorias analíticas clássicas (Indivíduo x Pessoa), estruturando inúmeras dualidades (casa x rua, indivíduo x pessoa, hierarquia holista e igualdade individualizante). 

Para Jessé “Você Sabe com Quem Está Falando?” (1979) “condensou todos estes elementos, definindo o núcleo hierárquico da sociedade brasileira, nossa ‘gramática social” (p. 94-96), sintetizada na ideia de que ‘cada um deve reconhecer o seu lugar’. O Brasil de DaMatta, informa Jessé, “toma o pessoal como dominante, em contraste à dimensão abstrata e universal das relações impessoais - que regeriam o EUA -, apostando e consagrando algo que não dispomos - uma sociedade sem ‘jeitinhos’, que não existe” (p. 94). 

O antropólogo considera exemplar do ‘jeitinho brasileiro’ o ritual da ‘carteirada’: “uma resolução rápida e informal de conflitos sociais, que comprova a força do ‘capital social’ nas contendas” (p. 98), onde soluções particulares tomam o lugar da ‘lei’. Para Souza, “em vez de dar tratamento crítico a este ‘objeto por excelência’ da reflexão social - o senso comum - ele o reproduz, dissimulado pela verve acadêmica. Sem questionar, nem buscar variabilidades de nosso atraso, apoia-se em valores abstratos, independentes da vida institucional que os forja e reproduz” (p.104-105). Sua reflexão ‘deixa bastante a desejar’ por não questionar “a hierarquia material e valorativa que embasa dadas práticas sociais. Por não problematizar quais seriam os estímulos seletivos à conduta acionados pelos sujeitos em relação. Por não enfatizar o poder diferenciado dos agentes em conflito. Por não mencionar as enormes estratificações e desigualdades brasileiras” (p. 108-111). Mais ainda, afirma Jessé, DaMatta desconsidera algo crucial: “a ‘eficácia prática’ das instituições que regram a vida cotidiana, sem relacioná-las a predisposições subjetivas que orientam a forma de agir das pessoas” (p. 109). Por fim, aponta ainda, valorizou excessivamente o “capital social (das relações pessoais) na mediação de nossas interações e interlocuções sociais, sem avançar na compreensão crítica de sua gênese e desenvolvimento” (p. 110). Como parte do ‘capital impessoal’, explica Souza, junto aos “capitais econômico (posse e propriedade de bens materiais) e cultural (conhecimento), ele garante o acesso a priori a privilégios” (p. 111). Afinal, sabemos que a dinâmica diferenciada entre acessos a privilégios e oportunidades é “o que faz o Brasil, Brasil”.

Na segunda parte - “A Ciência e o Racismo Global: sociedades honestas versus sociedades corruptas” - Jessé Souza afasta-se da perspectiva culturalista brasileira - provisoriamente, para ‘tomar impulso’ -, voltando-se à dimensão planetária da dominação global, capitaneada pelo ‘capitalismo informal’ norte-americano e pela consequente hegemonia da ‘cultura ocidental’. Contextualiza que “tal modelo substituiu o anterior (a tradicional violência física, contínua e dispendiosa), recorrendo a sofisticadas ferramentas de convencimento e adesão à superioridade, supremacia e exemplaridade da sociedade estadunidense, dentro e fora de suas fronteiras” (p. 117-122). Nesta seção revisita a Teoria da modernização, de Talcott Parsons, e a Teoria geral sobre os sistemas sociais, de Niklas Luhmann; influentes teóricos que mitigaram “as diferenças entre países e povos como resultado da exploração imperialista e/ou de causas sócio-históricas acidentais, cujos estudos não atentaram às dimensões universais da reprodução simbólica do capitalismo” (p. 123). Como outros, Souza considera que “o diferencial da dinâmica capitalista, desde então, é o embaçamento de sua dominação simbólica, cujas teses culturalistas deram o tom do debate sociológico contemporâneo - das discussões liberais às progressistas” (p. 118). 

A Teoria da Modernização, uma delas, surgiu nos anos 50, concomitante à hegemonia estadunidense do/no pós 2GM. Souza informa que “o domínio do ‘império’ sobre o globo, notadamente os países periféricos, foi agenciado pelo governo estadunidense e por suas fundações privadas - Rockfeller, Ford e Carnegie -, junto à sua poderosa indústria cultural - Hollywood - (p. 122). Segundo ele, “as diferenças entre países e povos não foram reconhecidas como fruto (podre) da exploração imperialista, ou de causas sócio-históricas contingentes. Mas sim, relacionadas à formação e desenvolvimento de ‘atributos do espírito’, naturalizando complexos processos sociais, como modernidade e progresso” (p. 125). 

Outra teoria dominante, elaborada e promovida por Niklas Luhmann, examinou fenômenos como exclusão e diferenças sociais entre povos e regiões, advoga a sobrevivência do mundo ‘pré-moderno’ como fator explicativo das desigualdades e segregações perenes nas/das sociedades periféricas. Mais uma vez, alerta Jessé, vingava “nova teoria generalizante sobre as diferenciabilidades sistêmicas entre regiões e as condicionalidades à formação e desenvolvimento históricos de sociedades regidas por redes de relacionamento pessoais” (p. 134-137). Mais ainda, afirma também que esse capitalismo tardio recorreu à outra proposição falsa, “a ‘ideologia meritocrática’. Esta ideia esconde a produção social diferenciada de desempenhos de sujeitos cujos talentos individuais seriam tratados como inatos. Igualmente, ela foi usada para encobrir desigualdades socialmente produzidas, onde o privilégio de poucos (nações e indivíduos) é naturalizado e reconhecido como parte legítima da dinâmica capitalista” (p. 138-139). Nada inocente, diz ele, “a meritocracia camufla práticas sociais perversas como, por exemplo, o ataque moral aos ‘perdedores’ e o saque e dominação conato em nossa formação e desenvolvimento histórico” (p. 139). Afinal, ela “exclui a maioria da população de acesso a direitos e bens públicos, bem como inibe o crescimento de vínculos comunitários, pela via de afetos socialmente relevantes, como compaixão e solidariedade coletiva” (p. 139). 

Na terceira parte - “Por uma teoria crítica da sociedade brasileira e do Sul global” - Jessé Souza examina intelectuais que embasaram sua renovação crítica, ao lançarem luz sobre processos de geração de desigualdades sociais e de conflitos inerentes. No ‘panteão nacional’, resgata Florestan Fernandes - quem apreendeu a complexidade da experiência social brasileira, recusando-se a ‘tomar de barato’ as enviesadas ideias de seus antecessores (“de sermos pré-modernos e atrasados”). Em particular, recupera o livro ‘A Revolução Burguesa no Brasil’ (1975), sobre o processo de implementação e consolidação do capitalismo brasileiro, via Estado Centralizado, Mercado e Esfera Pública. Para Florestan, diz Jessé, “a singularidade no Brasil está no fato dessas instituições existirem atreladas à lógica escravocrata. O que caracteriza nossa revolução burguesa como encapuzada, lenta e molecular, que impôs práticas institucionais sem a concomitante construção de novo horizonte simbólico, conscientemente articulado” (p. 144). 

Souza alerta que “uma singularidade cultural nunca é absoluta. Todas as sociedades globais compartilham um modo de classificar e compreender o mundo, fruto de uma construção do Ocidente, pela via de instituições como família, escola, fábrica, prisões e das diversas burocracias públicas e privadas” (p. 145). Por isso, busca reconstruir “a eficácia prática de instituições-chave no capitalismo contemporâneo brasileiro, como Estado e Mercado, família nuclear e esfera pública, pois são os estímulos institucionais que nos fazem ser quem somos, as veias por onde incorporamos avaliações e disposições para agir no mundo” (p. 144-146). 

Souza pontua que toda sociabilidade brasileira, nas mais diversas dimensões, esteve e está “influenciada pela Escravidão” (p. 144). A partir dessa prerrogativa, desconstrói nossa experiência sociocultural e a do Sul global, recorrendo, primeiro, à Pierre Bourdieu quem amplia o debate sociológico ao constatar a divisão da sociedade em grupos sociais com acesso diferenciado às disposições do comportamento prático. Em especial, recupera seu conceito de ‘habitus’, do qual vai derivar sua categoria ‘habitus precário’. Ele se apropria de parte das ideias bourdianas, em busca do que nos aproxima e nos distingue do capitalismo avançado, focado em “interpretar o processo de modernização do Brasil como produto da expansão do Ocidente” (p. 155-157). Jessé reconhece não haver nenhuma diferença essencial entre ‘nós e eles’, já que “os capitais impessoais envolvidos no processo de diferenciação são os mesmos. E mais, nas diferentes sociedades do capitalismo tardio, a violência simbólica que escamoteia a dominação social molda-se de forma semelhantes, baseada no privilégio transmitido pela socialização familiar e não em mérito pessoal” (p. 158-160). Um processo exemplar ‘aqui’, mas igualmente presente ‘lá’.

Nestes termos, denuncia também as exaltadas singularidades nacionais - a ‘toada da corrupção’, a exaltação de ‘jeitinhos’ e ‘pessoalidades’ - como ‘pérolas’ do pensamento social brasileiro. Prerrogativas que criam falsos-problemas e falsas-prioridades. Jessé afirma que “a classe média brasileira, detentora do valioso capital cultural, representa o estrato do trabalho intelectual, por oposição às classes populares, do trabalho manual/braçal” (p.). Todavia, exalta, “o acesso a relações sociais privilegiadas só é possível a quem já detém capital econômico e cultural, herdados aprioristicamente” (p. 163-164). Portanto, alega, a distinção sutil pelo ‘bom gosto’ encobre e legitima privilégios injustos, de todo tipo. Para J. Souza, o sociólogo francês não “reconstruiu uma hierarquia valorativa que forja a base institucional objetiva, transcultural e transclassista” (p. 172) que atinge ‘tudo e todos’. Assim, “descuidou da dimensão não-contextual, objetiva e universal, focado excessivamente no contexto pragmático das lutas sociais, que impede capturar constantes gerais mais amplas” (p. 172). Em particular, Jessé vai além da prisão contextual bourdiana, reconstruindo nossa desigualdade abissal e explicitando a hierarquia moral do Ocidente. Demonstra teórica e empiricamente a existência de “classes sociais globais que compartilham de gênese e de destino social semelhantes” (p.173). Segundo ele, “ricos e pobres, todos, possuem formas análogas de classificação e de avaliação e legitimação social. Porém, todas não são iguais, mas semelhantes e diferentes mediante a presença, ou ausência, de processos históricos de aprendizado coletivo - e não de maldições culturais imutáveis” (p. 174-179).

Neste percurso crítico, Souza ‘atualiza’ Bourdieu e resgata o neo-hegeliano Alex Honneth, da terceira geração da Escola de Frankfurt, e o filósofo canadense Charles Taylor, para retomar “a ideia do ‘reconhecimento social’ como o componente mais elementar e importante no processo de formação da ética do espírito humano” (p. 182-185). Recorre à Honneth e Taylor para explorar analiticamente a ideia de ‘aprendizado moral’ e reconhecimento social. Um processo, diz ele, “baseado na criação de regras morais de reconhecimento mútuo, contra a percepção utilitarista e reduzida do comportamento social, ultimado pela “busca por dinheiro e poder” (p. 184). Avança no argumento compreendendo que “no Brasil, além do gosto, a ‘distinção’ abrange outra dimensão que envolve aspectos da ‘dignidade’ e impede a muitos brasileiros o acesso a direitos de cidadania e o respeito mínimo necessário a uma vida digna” (p. 186). De forma perspicaz, qualifica dado ‘habitus precário’ presente em grande parte da população brasileira, “despossuída de atributos cruciais à sociedade moderna, como disciplina, autocontrole (capacidade de concentração) e pensamento prospectivo” (p. 187-190). Tal (in)disposição gera uma massa de marginalizados, “abandonados e condenados à barbárie, sob condições capitalistas” (p. 188). Especificamente, essa “construção social da dignidade, via socialização familiar moderna, incide sobre atributos básicos, futuramente exigidos pelo mercado competitivo e pelo Estado: disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo” (p. 189-190). 

Demarca que “para terem eficácia prática as ideias morais precisam ser institucionalizadas - ou seja, incorporadas, internalizadas - para produzir cidadãos e produtores úteis”. Essa ação metódica e disciplinada, argumenta, “reflexivamente remodela o ser, e tal processo, junto ao advento da vida cotidiana, vai configurando nova configuração moral - o ‘self pontual’ de C. Taylor” (p. 191-192). Esclarece ainda que “tal noção está precedida de outras - calculabilidade, raciocínio prospectivo, autocontrole e trabalho produtivo - implícitas ao processo de aquisição de autoestima e de reconhecimento social” (p. 192-193). 

No último capítulo Jessé Souza explicita a existência de uma ‘linha invisível da dignidade social’, chamando atenção para o fato de que “na Modernidade a dignidade não está atrelada a valores substanciais (honra), mas ao conjunto de capacidades individuais, disposições incorporadas que formam uma economia emocional, moral e cognitiva singular, social e historicamente produzida” (p.197). Jessé sustenta que “todos irão criar seus filhos na disciplina, no pensamento prospectivo e no autocontrole, para que eles tenham chances no excludente mercado competitivo” (p.197). 

Recupera a ideia ‘bourdiana’ da distinção social como operador de diferenças entre indivíduos e coletividades, embora reduzida a uma ‘distinção estética’. A partir daí, avança e visualiza uma “linha da dignidade que opera os processos de distinção, apreendendo uma forma mais perversa e aqui predominante: a desumanização e a condenação ao estado de barbárie de quase metade da população brasileira (p. 198). Aqueles muitos, “abaixo dos trabalhadores, condenados ao desemprego, subemprego, analfabetismo funcional, humilhação permanente e vida indigna” (p. 199). Sem dúvida, alega Jessé, numa sociedade historicamente desigual claro que “se luta por distinção, buscando a autenticidade de uma personalidade sensível” (p. 199-200). Contudo, no ‘Brasil dos humilhados’ “se luta, principalmente, por ‘dignidade’, almejando a segurança de uma ‘personalidade útil’ que garanta o direito elementar de ‘ser gente’. Como portadores de ‘habitus precário’ as ‘classes inferiores’ não incorporam disposições que performam a dignidade, constituindo-se em seres desclassificados” (p. 201). Aqueles, enuncia, que “por não dispor da incorporação de capitais informais socialmente valorizados são mal pagos, exauridos, explorados, diminuídos, reduzidos aos limites do corpo, maltratados, aviltados, condenados a serviços sujos e pesados - notadamente, os homens - e a trabalhos doméstico e sexuais - especialmente, as mulheres -” (p. 202-203). Portanto, atesta, “não só a ‘sensibilidade’, mas também a ‘dignidade’ confirmam classe como construção, e não como algo inato” (p. 203-204). 

Souza critica os critérios de classificação social, voltados exclusivamente para aspectos demográficos (nível de renda, escolaridade, ocupação etc.). Referenciado em elementos qualitativos - simbólicos, subjetivos e valorativos -, propõe nova estratificação, situando “a ‘ralé’ abaixo dos trabalhadores, que são igualmente explorados pelas classes do privilégio” (p. 209). Aqui, denuncia também a simplificação contida na ideia de que no Brasil dos governos petistas emergiu uma ‘nova classe média’. Para ele, “nem uma ‘classe do privilégio’, nem de ‘desclassificados’, esses ‘batalhadores’ ocupam as fronteiras das classes médias baixas, da ralé e dos trabalhadores ascendentes, cujo perfil sociodemográfico indica transformações nas formas de vida - empreendedores, técnicos de informática, serviços comerciais” (p. 210). No limite e relativamente, esses poucos que lograram sair do círculo vicioso “portam autoconfiança individual e solidariedade familiar, pela via da socialização religiosa positiva, que reconhece, agrega e acolhe. Ao mesmo tempo que enfrentam constantemente a ameaça e o medo de perder dignidade” (p. 211). 

Nesta perspectiva, Jessé expõe outro lado da socialização neopentecostal que classifica como “não-solidária, relacionada à instrumentalização da doutrina da prosperidade, que prega o aumento da riqueza individual como expressão e indicador da ‘salvação` e o acesso ao consumo como sinal de verdadeira graça divina” (p. 212). Afirma que “tal ideologia divide pessoas do mesmo grupo de pertencimento entre honestos e delinquentes, dignos e indignos, e provoca uma disruptiva ação interna que impede a solidariedade de classe; e ataca aqueles com baixas defesas emocionais e intelectuais, usando a fragilidade do pobre contra ele mesmo. Algo que parcialmente explica o conservadorismo e impotência política de nosso povo” (p. 209-210). Assim como escravidão, colonialismo e imperialismo balizam a fraqueza de nossas instituições, “a lógica acumulativa e seus operadores erigem um conjunto de indivíduos marcados pela incapacidade de conquistar plenamente a modernidade, frente a impossibilidade estrutural de dispor de estímulos afetivos e de precondições psíquicas, cognitivas e emocionais, à incorporação do conhecimento útil, necessário à reprodução no capitalismo competitivo” (p. 210-211). 

Para concluir afirma que “mesmo invisíveis na dor e no sofrimento, aqui se instaura uma ‘luta de classes’; um combate que ao ser revelado, certamente, trará visibilidade à própria disputa” (p. 216). Portanto, “a ‘luta de classes’ não é unicamente ‘luta sindical’; é também o exercício silencioso da exploração produzida e consentida socialmente”. Enfim, “compreender e construir meios à superação disso, dando visibilidade à humilhação de nosso povo, como uma classe de condenados à barbárie”, consiste em seu maior compromisso e desafio (p. 221-222). 


III BREVES COMENTÁRIOS: o Brasil e sua reinterpretação 


Enfatizamos o lugar do exercício crítico à compreensão e ao avanço do conhecimento do/no mundo, como ressalta Jessé Souza, cuja importância está além de disputas pessoais e institucionais. Não se trata de levantar polêmica sobre as ideias de ‘uns e outros’, nem tampouco ‘marcar territórios’. Conforme qualquer manual epistemológico, toda crítica é inerente e constitutiva do conhecimento, como uma via por onde saberes e fazeres se afirmam, se enfrentam e se transformam. Mais ainda, o empenho crítico é condição sine qua non para produzirmos uma ciência efetivamente democrática. Sem dúvida, um caminho muito bem percorrido por Jessé, especialmente neste livro fiel a seu projeto (e de muitos) de sonhar com uma ‘refundação do Brasil’. Além de corajosa, sua crítica cumpre aquilo que consideramos ser um ‘saber-dever-fazer’ de todo conhecimento, em destaque aqui as Ciências Humanas e Sociais. Dito melhor, ela comporta uma expertise que contempla aspectos imprescindíveis: competência e domínio do campo de estudo; originalidade, ineditismo e superação de pressupostos teórico-metodológicos; sistematização e divulgação dos ‘resultados’ e difusão do ‘produto’ para um público mais amplo, fora dos muros da Academia. Todos os passos e percursos perfeitamente seguidos pelo sociólogo na releitura de nossos ‘clássicos’. A cada reencontro com eles (clássicos), os tornamos presentes através do olhar historicamente datado de nossas inquietações.

Por falar em ‘clássicos’, nosso primeiro comentário remete-se à necessária desconstrução de certas ‘unanimidades nacionais’, considerando os usos políticos e ideológicos delas. ‘Brasil dos Humilhados’ desmonta pressupostos sagrados dos pais do pensamento sociológico brasileiro- Em destaque, por exemplo, sua problematização sobre o legado de Sérgio Buarque de Holanda e de Roberto DaMatta. Ao tratar nossa cordialidade como elemento chave à identidade nacional, reconhece Jessé, o historiador consagrou sua posição na/para a totalidade da intelligenza brasileira; um lugar ratificado em outras instâncias da vida social. De forma corajosa, Jessé ‘põe na berlinda’ este canônico pensador, sobretudo, a apropriação e adesão de suas ideias por parte de outros acadêmicos. Todos os responsáveis por interpretar o Brasil - desde as versões hegemônicas bem-sucedidas, incorporadas por variadas instituições, aos mais corriqueiros comentários do senso comum -. 

Na reedição do livro, Souza melhor situa a reflexão buarqueana em seu tempo, ao diluir a falsa polêmica sobre se Buarque de Holanda seria ‘menos ou mais culpado’ pela mitificação e idealização de nossa identidade nacional (dentro e fora do campo acadêmico). Como bem disse, não se trata da personalidade individual, mas sim de criticar a eficácia social de suas ideias, dentro e fora da institucionalidade acadêmica. O “Brasil dos Humilhados” reinsere o intelectual em seu tempo, histórico, político e ideológico. E mais, possibilita compreender por que ‘cargas d’água’ levamos tanto tempo para desconstruir essa perspectiva idealizada de nós mesmos - a do ‘brasileiro cordial’. Seguindo o caminho indicado por Jessé, a demora no surgimento dessa crítica e a recepção inicial dela na intelectualidade brasileira nos diz muito sobre o lugar e as características de nossa intelligenza. A crítica realizada incita-nos a explorar ainda mais a relação entre nossa decantada ‘cordialidade’ e nosso visceral ‘autoritarismo’. Um mesmo movimento hesitante e tardio se deu em relação a outros pensadores clássicos, analisados no livro. A reflexão de Jessé fornece alicerces à revisão, sob novas bases, de nosso pensamento social. 

Por exemplo, a crítica aos pressupostos de Roberto DaMatta. Jessé põe em exame a construção do etos nacional ‘damattiano’, ousando desmontar mais um ‘monstro sagrado’. Denuncia seu ‘culturalismo naturalizante’ e abstrato, como incapaz de examinar algo estrutural em nossa formação histórica: a distribuição desigual do capital simbólico e do capital material no país. No limite, este culturalismo ‘paira sobre nossas cabeças’, pois descontextualiza dada expressão cultural. Claro, pontua que toda manifestação cultural envolve muitas dimensões da vida social (a inversão do tempo ordinário, a transgressão, a dinâmica de solucionar conflito e estabelecer novas redes e pactos sociais etc.). Todavia, há um processo mais amplo de formação e desenvolvimento de tais expressões que precisa ser captado e qualificado para ser compreendido em seus próprios termos e contextos. Sem isso, a perspectiva damattiana que exalta o ‘Brasil como uma sociedade de relações’ (e não ‘contratos’) termina por ‘negar-e-renegar’ a diversidade e a qualidade das interações interclasses que nos faz sermos quem somos. Além disso, Souza considera que as análises deste ‘antropólogo de plantão’ pecam já na origem, por não dimensionar o lugar e o peso da Escravidão em nossa experiência social.

O segundo destaque está na força da atualidade crítica de Jessé. Ela tanto consagra seu lugar no pensamento social contemporâneo, bem como cumpre com a tarefa urgente, de todos, de repensarmos o Brasil, reinterpretando máximas sociológicas há muito condensadas e naturalizadas entre nós. Por isso mesmo, a análise apresentada na reedição do livro está além do puro exercício intelectual, do dever acadêmico de um ‘pesquisador sênior’, protegido pelos limites de seu próprio campo, e das exigências técnicas editoriais. Esta segunda edição é um novo produto que clarifica a tese defendida por ele, por meio da qual atualiza sua própria empreitada analítica, tanto auto reavaliando sua discussão, quanto refinando e melhor apresentando sua análise e seus propósitos. Como sabemos, desde ‘Max Weber e a ideologia do atraso brasileiro’ (1998), notadamente a partir da coordenação de uma abrangente pesquisa sobre classes sociais no Brasil (2009), Souza vem acumulando uma reflexão ímpar sobre nossa experiência sociocultural. Mais ainda, vem promovendo um conhecimento-chave para compreendermos certos quebra-cabeças da realidade brasileira para fora das fronteiras acadêmicas, deslocando-se para uma posição política e socialmente mais ‘orgânica’. Este deslocamento tem logrado êxito ao provocar novas formas de interesse e de compreensão sobre o culturalismo brasileiro, de características profundamente liberal e conservadora.

A terceira observação é a originalidade de sua trama reflexiva. De forma compreensiva e clara, Jessé revisita nossos clássicos, em diálogo com outros autores exemplares no panteão das Ciências Sociais e Humanas. Numa teia analítica complexa, porém em linguagem bastante palatável para os menos familiarizados com o campo disciplinar, resgata linhas de continuidade entre o nosso pensamento social e a sociologia clássica europeia e norte-americana que serviram para sustentar ideologicamente a histórica subordinação e dominação dos povos do Sul global. De maneira arguta, revela um traspassamento de interesses entre elite mundial e elite doméstica. Em concordância, ambas recorreram à ‘justificativa científica’ para explorar grande parte de nossa população e convencê-la do merecimento de sua própria desgraça. Segundo Jessé, tal dinâmica reconstruiu e reforçou na ‘alma’ do povo brasileiro processos socialmente perversos e disruptivos, produzindo efeitos como autopercepção, aceitação e acomodação social. Seja pela via da exploração direta, seja pelo convencimento (intra e extraclasses), os muitos portadores de uma ‘inferioridade atávica’ foram condenados a reproduzir infinitamente uma trágica condição de classe. 

A quarta consideração é a urgência conjuntural de sua discussão. Muito além dos contextos específicos dos pensadores criticados, ela fornece elementos centrais para compreendermos dinâmicas atuais que abundam na cena nacional. Nunca esteve tão claro quanto hoje (aqui e agora) a definição de Jessé de ser o Brasil uma sociedade ‘multidimensionalmente racista’, sustentada por uma ideologia elitista que serve para excluir, explorar e humilhar nosso povo pobre, preto, mestiço. Triste povo, convicto da inevitabilidade de seu ‘destino manifesto’ e largado ao ‘Deus dará’. Pior, ainda, convencido de ser ‘ralé’ destinada ao abandono, desprezo e a muita manipulação (das fake news às PECs eleitoreiras). A título de elucidação, acerca disso, destacamos dois eventos recentes em nossa história política que tão bem expressam a ‘tragédia nacional’: a Lava Jato e o ‘fenômeno’ Bolsonaro. 

Em relação à ‘Operação Lava Jato’, vale lembrar a antecipação de Jessé sobre os sentidos e significados dela, quando muitos laureavam esta operação. Em sua essência, o ‘lavajatismo’ é mais uma manifestação de nossa dominação elitista centenária, herdeiro dos mesmos moralismos enganosos que reeditam e amplificam, por meios oficiais (Justiça, Parlamento, Mídia corporativa), discursos e imagem para nos convencer de nossa ‘errática maldição cultural’. De forma espetacular, essa ópera bufa da ‘balela da corrupção’ captou as ruas, corações e mentes, forjando o apoio da opinião pública a serviço de uma travestida ‘vontade de poder’. Aos ‘incautos’, diz ele, é necessário pontuar que a Operação foi a força motora de tudo (de pior) que viria depois, do Impeachment de Dilma Rousseff ao (des)governo de Bolsonaro. Uma manobra para garantir a manutenção da rapina e o monopólio de poucos que vivem literalmente ‘as nossas custas’, pela indevida posse (e propriedade) de recursos (naturais ou não) públicos (de todos) que deveriam ser tratados de forma republicana (democrática). No que se refere ao ‘acontecimento Bolsonaro’, nos deteremos um pouco mais. Algo em total conformidade com as prerrogativas defendidas pela Lava Jato, a despeito das falsas descontinuidades e dissidências lacradas na mídia, entre seus protagonistas e coadjuvantes. 

‘Brasil dos Humilhados’ indica novas pistas aos muitos que viam o ‘capitão’ como um amador e outsider à tradição política nacional (conforme alguns cientistas políticos e ‘comentarista de ocasião’). Nada fora de seu habitat, Bolsonaro é uma, dentre outras, fiel expressão das dinâmicas, artimanhas e burlas seculares dos que mandam no Brasil, sejam os tradicionais ou emergentes: “apesar de seu ineditismo de inaugurar um extremismo de direita de caráter popular, não tem ninguém mais parecido e comprometido com a velha e retrógada política brasileira do que o atual ocupante do planalto” (Gouveia, 2022). Como representante mor desse populismo de direita, ele porta atributos ‘autoexplicativos’, como vil, ignorante, autoritário, despreparado, afinado com grupos socialmente dominantes descendentes e ascendentes (parcelas do Exército e das Milícias, do ‘Partido da boquinha’, o ‘Mercado rentista’, o capitalismo agrário do agrobusiness, madeireiros, grileiros e mineradores e, a mídia corporativa). Tragicamente, aqui, concorrendo para compor os inacreditáveis 30% que (ainda) apoiam o ‘capitão’, temos uma parte expressiva dos setores populares. Acerca disso, a reflexão de Souza é particularmente iluminadora para compreendermos como se dá a adesão de nosso povo pobre, preto e mestiço à inqualificável agenda bolsonarista. 

Partindo de seus estudos sobre a caracterização sociocultural das classes sociais no Brasil, Jessé aponta uma cisão interna nas classes subalternas que separa pessoas e grupos que portam uma experiência comum de exclusão, impedindo que entre eles haja identificação e solidariedade interna. No seio das igrejas pentecostais (um dos únicos espaços em que se fala ‘para os pobres’ e que se ‘ouve a voz’ deles), embalados pela ‘doutrina da prosperidade’, uma parte cada vez maior dos tantos historicamente aviltados jogam suas humilhações sobre os ‘seus’, em busca de uma dignidade que não lhes tem sido concedida. Movidos pelos afetos (melancolia, desesperança, medo, raiva, inveja, ressentimento) muitos entram em combate: ‘crentes contra macumbeiros’, ‘honradas’ contra prostitutas’, ‘trabalhadores contra bandidos’, ‘honestos contra delinquentes’, ‘héteros contra depravados’, ‘brancos mestiços contra pretos’, dentre tantas outras manipuladas diferenças. 

Talvez, em parte, isso explique o paradoxo de tantos evangélicos-cristãos aceitarem a ideologia miliciano-fascista do ‘capitão’. Ao final de contas, aproveitando-se da ‘luta intra e extra-classes’ e jogando com velhas e novas práticas e aliados políticos, o ‘ele-não’ vai avançando em sua capacidade de pilhar, explorar, enganar, hostilizar e maltratar nosso povo tão sofrido. Liderando uma pauta moral (que está além de mera estratégia de campanha) e pilotando um conjunto de ações neofascistas, o atual governante cumpre uma agenda na qual o povo brasileiro é cotidianamente esculachado. Mais uma vez, visto como ‘caso de polícia’; ou melhor, na conjuntura atual, é enquadrado como ‘caso de milícia’. Um modus operandi que se alimenta de caos e terror, via ameaças e violências objetivas, evidentes na ordem do dia (de Marielle Franco, passando por Mestre Môa e chegando em Marcelo Arruda, além de tantos tombados no caminho). Igualmente, como tão bem alerta Jessé, junto a estas nefastas ações, Bolsonaro reedita violências simbólicas ao se apropriar de um moralismo racista, desprovido da verve e do glamour do discurso autorizado dos ‘especialistas’. Porém, do mesmo modo, cínica e nocivamente reimprime uma estratégia discursiva (uma disputa de narrativa), que procura a todo preço frear e emperrar o relativo avanço de forças progressivas no Brasil. Como bem sabemos, progresso este resultado de muita luta social e da vontade política e compromisso de poucos que arriscaram elaborar e implementar políticas sociais inclusivas (nossos governos nacional-desenvolvimentistas). 

Enfim, a crítica de Jessé nos faz enxergar com mais clareza e domínio os sinais que indicam não serem os ‘males do Brasil apenas as saúvas’. Como tão bem aponta, é preciso examinar nestes ‘novos tempos’, no país, a velha relação (direta) entre dominação política, controle social, escravidão, elitismo, classismo, racismo, sexismo, desigualdades, pobreza e luta social. Mesmo sendo tarefa hercúlea, a partir de seu trabalho parece mais fácil (possível) reagruparmos ideias, dados e fatos para repensar nossa experiência sociocultural e para ter esperanças (de novo) de ‘sonhar com um Brasil grande’.


CONCLUSÃO


O livro de Jesse Souza tece uma crítica afiada sobre os pressupostos dominantes que estruturaram o pensamento social brasileiro. Ideias ‘de dentro e de fora’, embaladas em cores nacionais, que formataram as bases simbólicas à dominação econômica, social, política e cultural do Brasil, do Sul global e do mundo globalizado. Ao conjunto destas ideias ele nomeia de ‘racismo científico culturalista’. De forma precisa, pontua que este culturalismo (liberal e conservador) se torna hegemônico no discurso e na prática investigativa das Ciências Sociais, explicando as diferenças do comportamento humano (individual e coletivo) pela ênfase analítica nos estoques culturais (tradições, costumes, línguas, crenças) e não mais em traços raciais (fenótipos). Partindo de então, sua tese advoga a centralidade das dimensões morais para o comportamento e conduta dos sujeitos, na vida prática. Segundo ele, a dicotomia clássica entre corpo versus espírito é atualizada e serve para fundamentar prerrogativas modernas e contemporâneas que regem o mundo. Inicialmente sob domínio do campo religioso e depois do discurso científico, pontua, esta hierarquia moral estruturante orientou o ‘racismo científico culturalista’ de época. Para justificar muitas ‘razões, intenções e práticas’, revela, são reeditadas novas distinções entre povos moralmente superiores (protestantes, legados do espírito) e povos inferiores (desonestos, presos às mazelas do corpo). 

De um lado, aponta, tais dualidades legitimam a supremacia das economias centrais e do racismo cultural a nível global. De outro, estes antagonismos fundamentam formas de exploração e subordinação no plano doméstico. Ao longo do processo histórico, afirma, tal dicotomia vai acionar muitos outros pares de oposição para legitimar e invisibilizar conflitos, guerras, pilhagens e dominações (pagão x cristão, natureza x cultura, civilização x barbárie, por exemplo). Na história brasileira, sobretudo, argumenta, estas lógicas atuam eficazmente para privar o povo pobre, preto, mestiço, da dignidade necessária para que ele se enxergue e seja visto e reconhecido como alguém ‘digno de valor’. De forma medular, Jessé apreende a dimensão da ‘dignidade’ para escrutinar e qualificar o histórico processo de dominação, exploração e marginalização de quase metade da população brasileira, marcada por desigualdades estruturais, falta de oportunidades e abissal abandono. 

Mais ainda, seu trabalho captura novas dimensões e representações de classe, em especial, apreende a expressão e avaliação daquilo que compreendemos como a ‘experiencia moral da pobreza’, ao qualificar a dor e o sofrimento daqueles que de forma provocativa ele chamou de ‘ralé’ - os muitos brasileiros humilhados e silenciados que reproduzem, conscientemente ou não, esta condição -. Como tão claramente esclarece, refém do jogo perverso entre representação e autorrepresentação negativa, nossa ‘gente humilde’ se vê e é vista como um ‘Zé-ninguém’, de comportamento abjeto e servil. Infalível e negativamente, tal dinâmica faz o povo brasileiro se compreender e ser compreendido como o grande responsável por sua própria miséria e infortúnio. 

Enfim, mais que uma crítica, o empreendimento teórico de Jessé converge ao desejo de muitos de construir uma nova sociedade, alicerçada em outras bases, com menos humilhações, culpas e vergonhas, e “sem medo de ser feliz”. 



Patrícia Gouveia é Doutora em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/IFCS/UFRJ). 

Atualmente é Membro do Núcleo do PT de Barcelona e vinculada ao Centro de Estudos de Discurso (CDS - Intercâmbio técnico Brasil).

Desde 2003 é Coordenadora Geral do GEMAPP: Grupo de Elaboração, Monitoramento e Avaliação de Projetos Sociais e da respectiva Linha de Pesquisa ‘Experiência, Memória e Exclusão’. 

No período de 2003 a 2016 foi Professora Visitante e Consultora Ad Hoc dos Programas de Pós-graduação em Economia Doméstica (PPGED) e do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU) da Universidade Federal de Viçosa/Minas Gerais.



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