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MONIZ BANDEIRA E A DESORDEM MUNDIAL: uma resenha crítica por Patrícia Gouveia

MONIZ BANDEIRA E A DESORDEM MUNDIAL: uma resenha crítica Patrícia Gouveia1


I UMA APRESENTAÇÃO


O texto sumariza o livro indispensável hoje sobre o ordenamento do mundo contemporâneo: “A DESORDEM MUNDIAL. O Espectro da Total Dominação”, do saudoso cientista político e impecável analista, Luiz Alberto Moniz Bandeira. Uma primeira versão deste texto foi publicada em abril de 2022, visando ampliar os debates promovidos pelo Núcleo do PT de Barcelona2 através de objetos prazerosos’ que convidam à fruição e avivam nossos corpos, corações e mentes.

O ensaio inaugura a série “Resenhas Críticas” cujo objetivo é divulgar resumos analíticos de distintos bens culturais em circulação (livros, artigos, poemas, filmes, teatro, músicas e outros). Buscamos amplificar o interesse do público com produtos “bons para pensar” sobre o complexo e tumultuado cenário do tempo presente. Em via de mão dupla, refletimos palavras, argumentos, imagens, sons e sentidos capazes de espelhar o momento recente; bem como, estimulamos questionamentos sobre características e dinâmicas atuais, tanto no contexto mais amplo, quanto em termos locais.

Moniz Bandeira nos regala com uma perspectiva macro, crucial imprescindível ao entendimento de inúmeras contradições da ordem global e à compreensão de aspectos e desdobramentos de nossa experiência particular como ‘país emergente’. Apresenta-se breve biografia do autor, junto à sinopse dos argumentos e discussões centrais do livro. A partir daí, comenta-se aspectos suscitados pela leitura, conforme esperado de uma resenha crítica, ressaltando o estatuto do fato histórico à análise proposta e apontando certos limites internos à decantada democracia estadunidense. Conclui-se com breves comentários acerca da crise sistêmica capitalista e sobre os possíveis desdobramentos do atual contexto para o ‘Sul Global’.

Enfim, a reflexão do autor suscita muitas outras indagações, com perguntas que levam a repensar problemas e questões postas em nosso dia a dia, encarnadas em fatos, artefatos e artimanhas dessa desalinhada ordem mundial. Afinal, se não é ‘desordem’, definitivamente, “alguma coisa parece estar fora da ordem mundial”.



II A DESORDEM MUNDIAL: o autor em seus próprios termos


Como homem público, de muitos atributos e méritos, Luiz Alberto Moniz Bandeira é consagrado como um analista ímpar de seu tempo. Diplomata, acadêmico, cientista político, historiador e estudioso sobre política externa brasileira e suas relações internacionais. Foi docente das principais universidades brasileiras (UNB, UERJ, PUC-Rio, USP) e adido cultural e cônsul na Alemanha, onde faleceu, em novembro de 2017. Tristemente, já não está entre nós para, com certeza, nos premiar com a continuidade de suas análises, sempre valiosas, esclarecedoras e decisivas à compreensão dos recentes desdobramentos da (des)ordem mundial em que vivemos.

O livro resenhado - “A Desordem Mundial” - foi finalizado em 2016 e publicado em seguida, antes de seu falecimento. Uma última pesquisa de peso que confirma sua importância como ‘tradutor de nosso tempo’; um dos principais analistas brasileiros de política internacional. Neste trabalho concluiu sua trilogia (junto à “Formação do Império Americano” e à “Segunda Guerra Fria”), na qual analisa a geopolítica dos séculos XX e XXI, debruçando-se sobre a dimensão estratégica do sistema unipolar estadunidense. A discussão realizada abrange os principais conflitos contemporâneos, desde o pós-guerra fria, organizada em capítulos temáticos diversificados (o nazifascismo e governo Roosevelt, o pós-guerra, tratado do Atlântico Norte e macarthismo, a hegemonia estadunidense e o atentado 11/09, o fim da Guerra Fria, as guerras na Síria, Ucrânia e Oriente Médio e as pressões sobre a Rússia).

Já em suas primeiras páginas, o historiador destaca o estatuto do ‘fato’ à compreensão dos processos históricos: “um instrumento determinante à investigação de causas e consequências dos fenômenos observados”. De forma enfática, adverte que será ele - o fato - “o objeto e o fundamento de toda análise e crítica que busquem decifrar o complexo cenário geopolítico contemporâneo”. Seguindo tal máxima, alicerçado em vasto compêndio de ‘fatos e documentos’, edifica um potente estudo sobre o curso e os meandros do processo de consolidação da hegemonia estadunidense no mundo, dentro e fora de suas fronteiras, a partir da desintegração da URSS.

Sua análise mapeia a errática narrativa da geopolítica estadunidense (e de seus aliados), compreendida como “uma fake democracy”, bem distante do ideário de seus ‘pais fundadores’. Segundo ele, “desde a crise de 29, notadamente nos anos 70 e na primeira década do século XXI, consolidou-se o poder e a força de uma oligarquia imperial, no Estados Unidos, cujos alicerces foram a extensão de créditos aos governos, o aumento da dívida pública e o controle, interno e externo de demandas e reivindicações sociais”. Autoconstruindo uma verdadeira saga, fortalecido como centro único de poder, “o EUA contou com aliados históricos (Canadá, Europa Ocidental, Inglaterra) para exercer seu poderio sobre territórios, povos e civilizações”.

Neste curso, seguindo sua própria lógica sistêmica, “o militarismo e o rentismo financista norte-americano foram instrumentos efetivos à realização do excedente e da acumulação capitalista atual”. Segundo o analista, “o mundo hoje está refém dessa posição central e privilegiada, assentada numa ordem unipolar que se sustenta em ações efetivas como: a globalização comercial, a predominância do dólar como reserva mundial, as guerras por procuração (proxy wars) e a desestabilização de governos (regime change)”.

Em contraposição ao discurso abstrato e vago sobre ‘democracia’ e ‘liberdade’, Moniz Bandeira pontua que o Estados Unidos erigiu uma ‘democradura’ graças aos domínios e tentáculos de suas corporações bancárias, bélicas e petrolíferas. Estas “instituições impediram a ação autônoma de governos, cujos presidentes foram capitulados e ficaram reféns destes suprapoderes”. ‘Podres-poderes’, responsáveis pela crescente concentração de riquezas e privilégios e pelo exponencial aumento das desigualdades que esgarçaram e romperam as redes de sustentação das bases coletivas da sociedade norte americana (e de outras nações sob seu subjugo).

Conforme tão bem demonstra, “os conglomerados financeiros, tecnológicos e armamentistas estadunidense tomaram de assalto o Estado (e, consequentemente, os governos), submetendo tais instâncias aos interesses objetivos destas corporações. Através de muita propaganda, distorção e ilusão retórica, foi promovida a ideologia do triunfalismo do EUA, como centro gerador e difusor da democracia, da paz e das liberdades do/no mundo” (narrativa afiançada interna e externamente). Esses interesses corporativos subalternizaram a política à economia e às finanças, invertendo seu sentido público e universal (de servir à humanidade e aos interesses republicanos). Desafortunadamente, aliados e auxiliados pela grande mídia, “ganharam a opinião pública e foram legitimados pelas mãos da imprensa mainstream” (escrita e audiovisual). Tais meios produziram e reproduziram desinformação e contrainformação à serviço de interesses hegemônicos, “fabricando e distorcendo dados e fatos”.

Recorrendo a incontestáveis documentos, o historiador afirma que a democracia estadunidense tem se sustentado no paradoxo de um estado de guerra constante. Sem sombra de dúvidas, “o país foi responsável direta e/ou indiretamente pela destruição de muitos governos e sociedades, sob a prerrogativa de uma tendenciosa defesa das liberdades; junto à implementação de pseudodemocracias, em outras regiões e culturas, pela via das armas e guerras e sob o engôdo da necessidade de câmbio de regime” (outra falácia retórica).

O analista pontua que “desde o fim da URSS, de um lado, todos os governos estadunidenses eleitos impulsionaram guerras convencionais e não-convencionais nos Balcãs, no norte da África e no Oriente Médio”. Longe de resultados positivos, “tais conflitos trouxeram violência, massacres, destruição, terror, caos e catástrofes humanitárias de grandes e incontroláveis dimensões”. Ao pesquisar um conjunto de discursos e ações concretas (‘fatos’) - em Iraque, Líbia, Palestina, Afeganistão, Ucrânia, Sérvia, Síria -, sumariza e analisa a desordem provocada pela duvidosa exportação do modelo de democracia ocidental a outros cantos do mundo, investida capitaneado pelos EUA e seus aliados.

Recorrendo a ‘fatos-e-fotos’, ele explicita que “a escalada de guerras, conflitos, crimes e violação de direitos humanos culminaram em riscos e instabilidades contínuas em todo o mundo. Desequilíbrios e inseguranças presentes no crescimento exponencial de processos como organizações terroristas, refugiados, deslocamentos e migrações forçadas, exploração de pessoas, escravizadas e sexualizadas e aumento da miséria e da fome”, dentre outros efeitos perversos e nefastos que assombram a experiência social contemporânea.

Moniz Bandeira argumenta que, em nome da ‘defesa da democracia e da paz mundial’, “de forma contraditória, os EUA e seus consortes fomentaram e executaram um conjunto de ‘guerras por procuração’, com vistas a acessar bens e posições estratégicas, além de estender conflitos transnacionais às fronteiras da Rússia” - cujo restabelecimento e êxito, desde a derrocada do império soviético, ameaçaria a hegemonia norte americana -. Por conta da própria dialética histórica, uma ordem unipolar jamais seria absoluta, nem por si só se sustentaria. Ao mesmo tempo, de forma cada mais evidente, dinâmicas de redefinição deste ordenamento emergem e ganham visibilidade (em geral, negativa) mediante a expansão do poder econômico e tecnológico chinês e o ressurgimento do poderio militar e diplomático russo. Países que lideram a contestação e confrontamento de um mundo unipolar, advogando uma necessária multilateralidade do ordenamento mundial.

Acerca disso pontua que “o fim do bloco soviético (1989-1991) não representaria o triunfo da Democracia no mundo, nem tampouco do próprio Estados Unidos”. Após um período de inflexão, a recuperação da Rússia foi acelerada, fruto tanto da herança da URSS, da qual herdou 62% do potencial produtivo, quanto da série de transformações político-administrativas e de reformas neoliberais ocorridas a partir da década de 1990. Segundo M. Bandeira, “assim como o poderio britânico no passado, novamente o império russo disputaria o controle da Eurásia”. Porém, agora, numa escala e proporção bem maiores, “em disputa com os EUA; um combate e litígio que tem contado com o respaldo relativamente passivo da União Europeia”.

Como podemos observar a olho nu, apenas com o recurso de um mapa, “foram inúmeros e catastróficos os conflitos e guerras - no Norte da África e Oriente Médio, notadamente no Egito, Kuwait, no Iraque, no Afeganistão, na Líbia e na Síria; bem como nos Balcãs, no Leste Europeu, nas fronteiras da Rússia (Eslováquia, Eslovênia, Bulgária, Romênia, Estônia, Lituânia, Letônia, Sérvia e Ucrânia)” -. Aqui, a ganância e truculência estadunidense em criar e consolidar uma ordem imperial unipolar estão exemplarmente evidentes nestas intervenções dos últimos trinta anos, em conchavo com seus inúmeros comparsas preferenciais e subalternos.

Neste contexto, o imperialismo ocidental favoreceu e fortaleceu a escalada do extremismo islâmico, “permitindo que estes grupos fundamentalistas controlassem povos e territórios. Num perigoso trânsito de mão dupla, na perspectiva ocidental tal estratégia foi usada como arma para impedir a concorrência; ou seja, “deter a continuidade, o avanço e a centralidade do poderio russo no controle e acesso direto às águas do Mediterrâneo e do Atlântico”. Em particular, o EUA e seus aliados (OTAN) apoiaram e financiaram fundamentalistas dando garantias de acesso às facções a armas, petróleo e drogas”. Por meio da intermediação e apoio da Arábia Saudita, Catar e Turquia, aponta, foi garantido a organizações tribais, não-governamentais, o ingresso de recursos vultosos e de armas sofisticadas, de última geração. Do ponto de vista destes terroristas, foi fomentada uma caótica e perigosa mistura de ódio, ressentimento e sede de poder.

Como poderíamos prever, o feitiço virou contra o feiticeiro, pois o ‘terror’ fugiu do controle daqueles que o haviam promovido. A “escalada terrorista para fora das fronteiras internas das regiões de conflito impôs a necessidade dos EUA e OTAN coordenarem esforços com a Rússia, contra Al-Qaeda, Taliban e outros fundamentalistas”. Em especial, “as guerras por procuração fomentadas, notadamente na Síria, provocaram e promoveram a intervenção direta da Rússia na Síria, como aliada do governo de Al-Assad, fazendo frente ao desprovido poder no Oriente Médio e no Norte da África, cujo vazio promoveria um estado de anarquia e de extremismos”.

No caso particular da Síria, o autor argumenta que a vitoriosa intervenção direta russa no país (2016) transformou quanti e qualitativamente o estado de guerra, mudando efetivamente os rumos do conflito ao promover “estabilização das forças de Assad, eliminação do ISIS na região e freio nas manobras da Turquia (Erdogan). Após cinco anos de conflito, o saldo foi a predominância das forças russas na região e a enorme catástrofe humanitária, miséria e destruição impingida pelo conflito”. Desde então, é fato a relevância política e diplomática da Rússia como superpotência internacional, que leva a “firmar sua posição no Oriente Médio e a obstaculizar interesses e objetivos geopolíticos e estratégicos dos Estados Unidos e das potências do Atlântico Norte”.

Essa “restauração da principal república soviética, notadamente a partir do êxito na Síria e da afirmação de seu poder bélico, intensificou a escalada dos conflitos, que culminaria na truculência dos ataques e sanções da ‘democracia ocidental’ à Rússia”. Nesta dinâmica, “a expansão militar para o leste europeu e a subordinação regional aos interesses das alianças do Atlântico Norte, junto à desconfiança, ao repúdio e ao cerco ocidental aos interesses russos, alimentaram e escalonaram as tensões locais e os ímpetos beligerantes”, de todos os lados. Neste cenário estavam dispostas as condições e as peças que passariam a movimentar o tabuleiro do xadrez da geopolítica atual.

Por fim, recorrendo ao conhecido provérbio latino - atribuído ao autor romano Flávio Vegésio -, Moniz Bandeira foi profético ao se pronunciar sobre o contexto e as conjunturas do tempo presente imediato: “Si vis pacem, para bellum” (“Se queres a paz, prepara-te para a guerra”).



III UMA RESENHA CRÍTICA: breves considerações


Um primeiro comentário refere-se ao tipo de gênero textual usado para situar melhor os propósitos e limites do texto elaborado (e da própria proposta de ‘Resenhas Críticas’). Conforme Luciane Sippert, a resenha é “um gênero discursivo no qual a pessoa que lê e aquela que escreve têm objetivos convergentes: uma busca e a outra fornece uma análise crítica sobre determinado livro, artigo, software de computador, filme, dentre outros. Possui um teor avaliativo e informativo(Sippert, 2015). É exatamente este objetivo de informar e avaliar que inspirou a criação da nova série de escritos.

De forma direta e objetiva, as resenhas promovem produtos e materiais que nos dão acesso a conhecimentos críticos cruciais para decifrar, ao menos em parte, a complexidade do tempo presente. Mais ainda, possibilitam interlocuções e diálogos para fora do específico público-alvo. Portanto, não se trata de textos de especialistas, teóricos, frutos de estudos e pesquisas, mas sim escritos de ‘primeiras impressões’, opiniões ensaísticas, suscitadas pelo debate, interesse e urgência de compreender a realidade que nos cerca, auxiliados por ferramentas analíticas de qualidade. Mais ainda, os ensaios são ‘estratégias’ tanto para convidar potenciais interessados a acessar diretamente o material resenhado, quanto para despertar nossa curiosidade e capacidade imaginativas.

Um segundo ponto diz respeito à pertinente exaltação e defesa que Moniz Bandeira faz do estatuto do ‘fato histórico’ como imperativo analítico para compreendermos dinâmicas e processos político-sociais mais amplos. A reflexão produzida fundamenta-se em inúmeros documentos de domínio público que deram sustentação aos seus argumentos e crítica. Como espera-se de um pesquisador de seu porte, sua desenvoltura e maestria no uso do ‘fato’ são louváveis e impressionantes. Algo facilmente comprovado no simples manusear aleatório de seu livro.

Com ironia fina - de forma consciente, ou não -, ao exaltar de imediato à objetividade do ‘fato histórico’, o autor parece ter implícita uma preocupação não apenas epistemológica, conforme advoga a produção de conhecimento no campo das Ciências Humanas e Sociais (notadamente na História, que tem como objeto principal a descoberta, sistematização e análise do ‘fato histórico’). Essa alusão traz de forma tácita outra inquietude, em termos mais objetivos e pragmáticos, comprovando a grande sintonia do analista com seu tempo.

Em tempos de pós-verdades e fake News, tal referência manifesta atenção e cuidado cruciais. Mais do que nunca, hoje é imprescindível e providencial promovermos e formarmos argumentos e opiniões com base em ‘fatos’, e não mentiras, ou mesmo ‘convicções’. Em se tratando de temas e questões tão próximos e ‘quentes’ no tempo presente, especialmente, o acesso a ‘fatos’ permite duvidar de certas ‘verdades-de vida-fácil’ que têm sido veiculadas para ganhar a opinião pública e captar ‘corações e mentes’. Falsas verdades construídas de forma descontextualizada, sem fato, sem fonte, sem racionalidade científica e de duvidosa lógica.

Uma terceira observação recai sobre a dinâmica interna da hegemonia do EUA. Junto aos domínios materiais propriamente ditos (capital financeiro, controle monetário internacional, indústria bélica, conglomerados de petróleo e gás e agências de segurança), uma forte e arquitetada dominação simbólica subjaz à superioridade e triunfalismo do ideário democrático estadunidense. Muitos estudiosos pontuam que o ‘império americano’ teve como braço forte o campo das ideias, promovido por institucionalidades competentes (ciência, mídia, indústria cultural e de entretenimento). Como sabemos, não há poder sem que haja um conjunto de ideias que o sustente e veicule. Portanto, no limite, as ideias criam o mundo material.

Na sociedade norte americana, em particular, esse suporte ideológico foi conquistado não apenas pela hegemonia do campo das ciências e pesquisas, nem unicamente pelo controle da mídia oficial. De forma articulada, a supremacia estadunidense dentro e fora de suas fronteiras foi conseguida também por uma potente indústria cultural de entretenimento, notadamente o conglomerado de Hollywood. Acerca disso, Jesse Souza esclarece, em seu livro ‘A Guerra Contra o Brasil’, que no mercado dos bens culturais, sob grande hegemonia ‘yankee’, os produtos oferecidos e divulgados, qualquer que sejam as embalagens, reproduzem representações - ideias, gostos, modas, imagens e saberes - reconhecidas como válidas, legítimas e desejadas. Segundo ele, essas manipulações discursivas e imagéticas estão evidentes nas produções ‘hollywoodianas’ nas quais “árabes, latinos, eslavos e negros são vítimas recorrentes de todo tipo de estereótipo odioso no cinema e nas séries televisivas de grande público. Eles representam os criminosos, os traficantes, as pessoas pouco confiáveis e desonestas, aqueles que, como a ciência racista, devemos temer e odiar. O prestígio científico, embalado com armas de guerra, passa a ser veiculado pelos atores e atrizes mais atraentes, talentosos, charmosos e desejáveis, sequestrando e seduzindo nossa inteligência pela força irresistível da atração sexual e amorosa” (Souza, 2020, p. 48).

Outra consideração incide sobre as consequências internas do modelo capitalista norte-americano. Em relação à política externa, a análise de Moniz Bandeira é irretocável, abrangente e precisa ao revelar e examinar evidências da voracidade imperialista do ‘Deep state yankee’ (o conglomerado industrial militar, as Forças Armadas e as agências de segurança). Em termos internos, deveríamos debater mais exaustivamente os efeitos perversos desse padrão acumulativo sobre a própria sociedade estadunidense. Conforme tão bem examina Bandeira, a supremacia estadunidense se deu graças à dominação de uma elite econômica, oriunda do capitalismo financeiro, das corporações de petróleo e gás e da indústria armamentista. Mas, também, às custas de muito controle e alienação do povo norte-americano. Portanto, o ‘declínio do império americano’ não está evidente, apenas, fora de suas fronteiras.

Não por acaso, a sociedade norte-americana hoje está dramaticamente esgarçada por conflitos intrínsecos incomensuráveis, refém de problemas sociais que comprometem sua experiência coletiva. Dentre muitos males e sintomas, um conjunto deles é bastante elucidativo da falta de coesão interna, da onda neoconservadora e das ameaças terroristas que assombram internamente esta sociedade. Por exemplo, o empobrecimento, miséria e endividamento das classes médias e trabalhadoras, a ameaça e perda de direitos, a alienação, incivilidade, individualismo e reacionarismo, a intolerância, violência, classismo, sexismo e racismo. Neste cenário, roubam a cena as investidas da orla trumpista que defendem a invasão do Capitólio, o desmonte da Justiça, a extinção do FBI, dentre outras. Sob as ameaças e os riscos da ‘Era Trump’, cada vez mais, esta sociedade está marcada por uma desigualdade social galopante que abriga uma massa de ressentidos apartada e perigosamente alimentada por ódio, ignorância, fake e deep news.

Por último, cabe breve nota sobre a crise sistêmica do capitalismo atual. No curso das contradições do modelo liberal, desde a virada deste século, os dramáticos acontecimentos dos últimos anos (as doenças emergentes e a pandemia do coronavírus, as mudanças e catástrofes climáticas, os conflitos localizados e as guerras de escopo global) apontam novos problemas e eixos disruptivos que ameaçam estados e sociedades como um todo. A gravidade e intensidade da crise e de seus conflitos (frios e quentes) exigem mais do que um ‘mascarado’ debate sobre Democracia versus Autocracia. Os problemas precisam ser enfrentados, priorizados, considerados e tratados coletiva e globalmente, para atacarmos de fato os riscos que nos cercam. A partir desta contestação, formulamos uma pergunta direta. Em que medida e termos, o tratamento urgente, efetivo e responsável dos citados episódios poderia alterar as bases de acumulação do hegemônico sistema vigente?

Um contraponto recai sobre os riscos e equívocos resultantes da escalada de ameaças, cercos e sansões produzidos pelos EUA e aliados, na tentativa de garantir o padrão de acumulação vigente e de eliminar a concorrência global, ao buscar subordinar e isolar a Rússia, e intimidar e neutralizar a China. Dentre muitos efeitos, esta dinâmica tem servido para piorar enormemente o encaminhamento de soluções conjuntas que ataquem os problemas reais nos campos da saúde coletiva, do meio ambiente, das igualdades e direitos, da geração de emprego e renda, da segurança global e da governança política.

Por um lado, isso vem contribuindo ao escalonamento das características autocráticas e autoritárias do governo russo e vem dando materialidade aos interesses político-estratégicos de seu governo. Como sabemos, com jogos e táticas de perpetuação no poder, Putin tem controlado a sociedade russa, inibindo quase todas as formas de contestação e dissidência. Ao mesmo tempo, através do uso nada republicano da máquina pública, aparelhou a oligarquia avalista de seus interesses político-estratégicos. Uma dinâmica que alimentou a execrável alternativa de abandonar a via diplomática na resolução de conflitos, desconsiderando máximas do Direito Internacional (a renúncia ao uso da força militar e o princípio da integridade territorial dos Estados). Todavia, por outro lado, a perigosa situação atual não é produto de ‘delírios de poder’ do chefe de estado russo. Nesta conta, a responsabilidade da guerra deve ser atribuída aos governos ocidentais, capitaneados pelo Estados Unidos e por uma subserviente OTAN. Como muitos apontam, o EUA usa o conflito como meio para demonstrar sua ‘virilidade ameaçada’, vender armamentos e tecnologias, controlar recursos e mercados e, sobretudo, provocar e ameaçar a China. Da mesma forma, a Organização do Tratado Norte precisa da Rússia inimiga para justificar seus interesses expansionistas, conquistar novos mercados e afirmar a supremacia cultural do Ocidente.

Um outro desdobramento é que a investida ocidental para ampliar a dependência e subordinar à ordem ocidental outras regiões do mundo tem concorrido para uma maior e mais sólida aproximação da Rússia militarista com o capitalismo de estado chinês, em termos econômicos, diplomáticos e geopolíticos. Pactuadas, Rússia e China passam a vascolejar a ordem internacional vigente e a reconfigurar seus interesses e áreas de influência, denunciando e desafiando a hegemonia unipolar norte-americana e de seus fiéis escudeiros e aliados. Como observamos, a China tornou-se a maior ameaça ao poderio norte americano, desde sua ‘ascensão pacífica’3, mediante uma consolidada posição na economia e no comércio global. Os movimentos e consequências na cartografia mundial indicam um prolongamento da extensão, do tempo e da temperatura dos conflitos, que inquietam e sobressaltam o equilíbrio e a ordem estabelecida. Igualmente, apontam um gradual e inevitável deslocamento de antigas soberanias geoeconômicas e supremacias geopolíticas.

Nestes termos, o cenário atual tem se polarizado acirrando disputas por interesses hegemônicos. Por um ângulo, sob a batuta do capital financeiro e da corrida armamentista, assiste-se ao recrudescimento de velhos e novos compromissos e acordos (OTAN, G7), além de pactos recentes (AUKUS, IPEF - Quadro Econômico de Prosperidade do Indo-Pacífico), que visam manter o padrão acumulativo e dominar fontes e territórios, num quadro de bens e recursos escassos e de intensa contestação de valores e institucionalidades. Por outro, o modelo chinês vem demonstrando grande capacidade política, habilidade de coordenação estatal e de aglutinação do empresariado privado, através de uma série de iniciativas comerciais e econômicas e de planejamento e investimentos tecnológicos, além de demonstrações efetivas de poderio militar. De forma objetiva, testemunhamos movimentações concretas - o aprofundamento da parceria chino-russa, a construção de um sistema monetário alternativo, a consolidação de novas áreas de influência, a ativação da Rota da Seda, a expansão do BRICS, incluindo novos candidatos como Argentina, México, Irã, Turquia, Indonésia e Vietnã - que indicam que “tudo que é sólido se desmancha no ar”.

Enfim, hoje fatos e acontecimentos evidenciam mudanças paulatinas e sistemáticas na ‘estabelecida’ ordem mundial. Deslocamentos que acendem os sinais de alerta às antigas e novas ameaças e riscos, bem como indicam a necessidade de nos defendermos e apontam algumas frestas por onde avançar.



IV UMA CONCLUSÃO


A leitura do livro de Moniz Bandeira foi decisiva em termos de informação, conhecimento e crítica. Dentre muitas indagações, sua reflexão nos levou a outras questões, inevitavelmente articuladas, que configuram novas chaves de entendimento acerca do mundo em que vivemos. Em especial, nos incitou a colocar perguntas sobre o escopo dessas transformações na geopolítica global, em contexto de crise e contestação do padrão de acumulação capitalista vigente. Igualmente, nos levou a indagar sobre o timing dos câmbios no ordenamento mundial aos olhos do que chamamos o ‘Sul Global’.

Para ‘além do bem e do mal’, presenciamos a relativa perda de influência geopolítica do Ocidente e a transformação escalonada da mudança do centro de gravidade da economia mundial para a Ásia (e não mais as Américas). Neste fluxo, o modelo de capitalismo atual, agônico, representa uma ameaça particular às economias periféricas, já que suas variações locais - as diversas formas de neoliberalismo, neocolonialismo e neoimperialismo - se alimentam de nossas ‘veias abertas’. Portanto, o cenário atual indica o recrudescimento de alargados blocos bipolares, tornando imediatamente improvável uma decantada e desejada nova ordem mundial efetivamente ‘multipolar’, que estaria assentada no capitalismo liberal do Ocidente, no modelo capitalista de estado sino-soviético e na redefinição das economias emergentes do Sul global.

Todavia, em tempos de retomada da ‘onda rosa’ em nossa dependente região - América Latina e Caribe -, tal panorama poderia promover aspectos positivos à nossa luta por emancipação? Ou melhor, as transformações em curso produziriam brechas à reordenação e reintegração desses países emergentes?

Enfim, perguntas e respostas estão no ar. Esperamos que todos nós (Estados, Governos, Mercados, Empresas, Povos e Sociedades) tenhamos em conta a importância e urgência destas (e outras) questões. E mais, que atuemos em muitas frentes de forma proativa na busca de respostas capazes de colocar um pouco de ordem no caótico e catastrófico cenário que hoje nos enquadra.



REFERÊNCIAS

CREMA, Gabriela, em https://www.politize.com.br/ascensao-pacifica-chinesa/


MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. A Desordem Mundial. O Espectro da Total Dominação. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira.


https://outraspalavras.net/outrasmidias/moniz-bandeira-descreve-a-desordem-mundial/.


https://pt.wikipedia.org/wiki/Moniz_Bandeira.


https://jornalmetamorfoseuergs.blogspot.com/2015/05/resumo-e-resenha-semelhancas-e.html.


https://fpabramo.org.br/2018/03/20/uma-nova-guerra-fria/.


SOUZA, Jessé. A Guerra Contra o Brasil. Como os EUA se uniram a uma organização criminosa para destruir o sonho brasileiro. Estação Brasil, 2020.


1 Consultora Ad Hoc, vinculada ao Centro de Estudos de Discurso (Intercâmbio técnico-acadêmico Brasil GEMAPP/CDS e Gestão Administrativa) e Membro do Núcleo do PT Barcelona.

2 Um coletivo aberto, circunscrito a toda jurisdição de Barcelona; lugares onde há brasileiros que votam em Barcelona (Girona, Tarragona, Baleares, Países Bascos, dentre outras).


3 Segundo Gabriele Crema, “a China utiliza esta estratégia já que, ao contrário de outros países em ascensão, a nação oriental não se engajou em invasões, colonização e grandes conflitos. Na realidade, o curso de ação chinês foi o de buscar integração do país na economia mundial, mantendo-se longe de disputas territoriais e reconhecendo que a ampliação do raio de alcance de sua diplomacia pode lhe oferecer mais oportunidades do que obstáculos” (2020).



Patrícia Gouveia é Doutora em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/IFCS/UFRJ).
Atualmente é Membro do Núcleo do PT de Barcelona e vinculada ao Centro de Estudos de Discurso (CDS - Intercâmbio técnico Brasil).
Desde 2003 é Coordenadora Geral do GEMAPP: Grupo de Elaboração, Monitoramento e Avaliação de Projetos Sociais e da respectiva Linha de Pesquisa ‘Experiência, Memória e Exclusão’.
No período de 2003 a 2016 foi Professora Visitante e Consultora Ad Hoc dos Programas de Pós-graduação em Economia Doméstica (PPGED) e do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU) da Universidade Federal de Viçosa/Minas Gerais.

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  A força daS culturaS brasileiraS no exterior contra o Dragão da Maldade De Flávio Carvalho, para o site da FIBRA. @1flaviocarvalho, sociólogo e escritor. @quixotemacunaima, no Facebook. Barcelona, agosto de 2023. “Se oriente, rapaz, pela constatação de que a aranha vive do que tece. Vê se não se esquece. Pela simples razão de que tudo merece Consideração… Vê se compreende. Pela simples razão de que tudo depende. De Determinação. Determine, rapaz..” (Oriente, Gilberto Gil). A retomada das políticas públicas com intensa participação popular, neste novo governo, passa pela realização de diversas conferências de promoção de políticas públicas. Tal como o partido que tem Lula como Presidente de Honra, o PT, começou a fazer desde que assumiu as primeiras prefeituras. E não foi por acaso que estas mesmas conferências enfrentaram o alvo letal das primeiras canetadas nazifascistas, logo que a familícia assumiu, extinguindo-as, todas as conferências. Bem como (mal) fez, o inelegível, com todo

Parabéns por um ano do Núcleo do PT Barcelona!!! Por Anna Ly

Assisti ao programa de comemoração dos 43 anos do PT e primeiro aniversário do Núcleo de Barcelona e achei muito bom mesmo! Parabéns a todos que estiveram no programa e aos que realizaram esse excelente trabalho no Núcleo desde os passos preparativos e os que se seguiram depois da sua fundação!  Eu gostaria de contribuir com a narrativa da história do Núcleo com alguns dados e uma perspectiva de quem acompanhou todo o processo.  Primeiro, só a título de informação mesmo, queria dizer que há muito tempo atrás, não sei exatamente o ano, houve outro Núcleo do PT em Barcelona. Em relação ao nosso, na época da fundação, éramos 18 filiados oficialmente registrados na lista da SRI. Além desses filiados, havia um ou outro que não constava na lista,  ou que estava em processo de filiação, e simpatizantes que participavam no grupo de whatsapp. De acordo com o regulamento, na assembleia de fundação do Núcleo, tínhamos que ter pelo menos 9, metade do total de filiados, e conseguimos realizá-la com