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BOLSONARO E BOLSONARISMOS: dinâmicas e superações - Patrícia Gouveia

I APRESENTAÇÃO


O texto lança luz sobre o dramático cenário do ‘Brasil-em-tempos-de-Bolsonaro’, focando em dinâmicas correntes no dia a dia de nossa experiência político-social. Ele é produto de distintos debates travados em nossos ambientes de trabalho e no coletivo onde atuamos: o Núcleo do Partido dos Trabalhadores de Barcelona2, em cujo blog publicou-se uma versão prévia do escrito, em março de 2022 (https://nucleoptbarcelona.blogspot.com).

Nestes diferentes contextos discutimos problemas cruciais à realidade brasileira hoje. Especificamente, neste ensaio apresentamos certos atributos simbólicos subjacentes à Bolsonaro e às lógicas bolsonaristas que informam práticas e discursos vigentes. Em seguida, interpretamos dadas possibilidades de superação do atual ‘estado-de-coisas’. Por fim, examinamos a atual conjuntura política brasileira vislumbrando o pano de fundo que emoldura a provável vitória do ex-presidente Lula na disputa eleitoral em curso.



II BOLSONARO E BOLSONARISMOS: bases, desafetos e narrativas


Nem Jair Bolsonaro nem o bolsonarismo representam fatos novos e, tampouco, estão distantes e alheios às condicionalidades nacionais. Todavia, atordoados e atônitos com os rumos atuais da política e da sociedade brasileiras, perguntamos como chegamos aqui e para onde vamos. As respostas são muitas e dependem de compreensão e imaginação crítica.

Personagem e personalidade típica na política desde 1991, até 2018 com sete mandatos como Deputado Federal), em 2019 subiu ao pódio político-institucional máximo, inaugurando um extremismo de direita de caráter popular. Apesar deste fato inédito (populismo de direita), não tem ninguém mais parecido e comprometido com a velha e retrógada política brasileira do que o atual ocupante do planalto.

A despeito de nosso susto já durar bastante, paradoxalmente, nunca estivemos tão próximos de pôr fim a esse pesadelo. Ao longo de seu desgoverno, Bolsonaro vem lidando com muitas intempéries e tem recebido distintas críticas. Além da contínua e aguerrida luta de nós progressistas, ele vem perdendo apoio entre aqueles que o elegeram (majoritariamente, os mais escolarizados e com maior poder aquisitivo e parte dos cristãos-pentecostais). Todavia, como indica a enxurrada de pesquisas, o atual chefe do executivo é um player de peso no cenário eleitoral. Fato que revela muito do que somos.


Bolsonaro: apoio eleitoral e populismo de direita


De forma errática, Bolsonaro representa mais do que alguém legitimado pelo limitado pleito de nossa democracia representativa. O atual (des)governo irrompe na cena pública nacional ressignificando temporalmente um autoritarismo essencial que acompanha a história política e social do país. Infeliz e tristemente, hoje o ‘capitão’ tornou-se força orgânica que exerce influência no modo como atuam pessoas, partidos, instituições, opinião pública e eleitores.

Todavia, somos maiores do que ‘essa coisa’. “Ele, não” é o grito em defesa própria e da nação (“a alma, a identidade e o espírito de um povo”). De forma contundente declaramos que o (des)presidente não nos representa e não retrata a totalidade do Brasil (estado, sociedade e cultura). Embora retrate, sim, uma parte indigesta de nós mesmos. Portanto, é pernona non grata, cuja presença política tem rebaixado e envergonhado a autoestima de nós brasileiros, dentro e fora do país.

Nos contornos de nossas fronteiras, vivenciamos hoje grave retrocesso civilizatório; um Brasil do atraso, atravessado por enormes conflitos e contradições internas tanto de cunho econômico (estagnação econômica, desindustrialização, inflação, privatização, desemprego, pobreza e fome generalizada), quanto de natureza político-social (fundamentalismos morais, negacionismos, refreamento e controle do Estado, fisiologismos políticos, espoliação e superexploração do trabalho, violências políticas e violações de direitos).

Do lado de fora, o ‘Brasil-de-Bolsonaro’ ganha fama e visibilidade ao revés, reposicionado em lugar indesejável. O país foi tornado um pária no cenário mundial e visto com desconfiança e motivo de chacota de todos. Tristes tempos de um ‘Brasil-sequestrado’, antes laureado e aclamado pela própria natureza, pelo povo e pela riqueza cultural (“terra do samba e do pandeiro”, da Capoeira, do Chorinho, da Bossa Nova, da Tropicália e do Carnaval). E, em passado recente, reconhecido pelo sucesso de suas políticas públicas de combate à fome, pobreza e exclusão social, e pela ativa e altiva geopolítica.

Como em outras ocasiões, o apoio popular à Bolsonaro foi explorado astutamente pelo ‘mercado’, pela oligarquia tradicional, pelo ‘projeto militar’ e por demais setores radicais de direita. Segmentos diferenciados que endossaram e deram substância à pauta autoritária, conservadora e extremista, da recente política nacional (a malfadada ‘era Temer-Bolsonaro’).

Acerca disso, encargos e culpas devem ser compartilhados já que Bolsonaro não agiu sozinho, nem contou apenas com as astúcias de sua ‘família metralha’ e do abjeto Steve Bannon. Em clima de ‘vale-tudo’ para retirar a hegemonia político-partidária do PT (atacado desde sempre, em especial, a partir do Mensalão, em 2005), o atual chefe do executivo foi sendo tratado por muitos como um ‘acidente de percurso’, ‘um mal necessário’ ou mesmo, um desvio tático na estratégia golpista. De um lado, foi eleito por grupos historicamente privilegiados, notadamente partidários que disputaram a liderança política nacional (PSDB) ameaçada pela combatividade e compromisso social do Partido dos Trabalhadores. De outro, foi ungido por uma fração dos setores populares ao captar parte expressiva do antigo eleitorado petista, cooptado pela desconfiança na política (antipolítica), pela demonização do PT, pela simplificação das mensagens, pelas fake news e pela moralista agenda de costumes.

Em sintonia com a onda neofascista geral, cuja expressão mais acabada é a grotesca figura de Donald Trump, o atual (des)presidente tornou-se o principal representante do extremismo de direita e da arrogância negacionista. Desde 2013, a cena política nacional foi ocupada por novos segmentos, indignados e incitados à disputa das ruas, guiados por valores e avaliações morais conservadoras e extremistas, sob a bandeira autoritária da defesa de “Deus, pátria e família”. Um bom indicador aqui foi a antecipada candidatura do ex-capitão, lançada pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), já em 2014. Cada qual a sua maneira, reverberou a mensagem de Bolsonaro e/ou apostou nas mudanças que ocorreriam ao colocá-lo na Presidência.

Fantasmas do passado nos mostram como estados, instituições e grupos ameaçados por crises, conflitos e instabilidades podem desviar a seu favor o fluxo das tensões sistêmicas que ameaçam a coesão social. Nessa conjugação sinistra ele logrou apoios de muitas instituições e pessoas. O aval do partido militar, leia-se, uma parcela das Forças Armadas, notadamente Exército e Milícias, sedenta por consolidar e manter-se no poder (a ‘boquinha’). O suporte do capital financeiro e a burguesia rentista, o ‘Mercado’ (os bancos e fundos de investimentos e seus acionistas majoritários). O apoio do capital agrário (transnacionais do agrobusiness, madeireiros, grileiros e mineradores) e o endosso da grande mídia - PIG. Em particular, a imprensa corporativa e a máquina de fake news bolsonarista incitaram à exaustão sentimentos que levaram um terço da população a endossar o projeto protofascista. Tais meios promoveram e naturalizaram discursos e imagens de grande apelo, ressonância e aderência entre os setores de baixa renda pré-dispostos via ideologia, religião e comportamento.

Num contexto reversamente favorável devido a crises e ameaças concretas e imaginárias, um projeto de reconstrução conservadora no/do Brasil foi ganhando espaço e força inimagináveis. Seguindo um script traçado fora, mas preenchido internamente, Bolsonaro alimenta e se realimenta de uma perversa dinâmica, peculiar à nossa formação e desenvolvimento histórico. Nada simples, portanto, são muitas e distintas as razões por trás do recrudescimento da extrema direita no Brasil (e no mundo).

Nem todos temos ‘culpa no cartório’ (muitos temos raiva), mas Bolsonaro, sim, tem responsabilidade direta sobre a dramaticidade do contexto atual. Sem ‘mea culpa’, nem ‘falsas autocríticas’, sabemos que os dilemas e impasses atuais foram (e são) causados por escolhas políticas e decisões econômicas que aviltam nossas vidas. Seja no plano político-econômico e/ou sociocultural, o desmonte de nosso estado, sociedade e instituições tem as marcas de suas digitais e de seus asseclas.

Legislando em causa própria, os setores dominantes que o elegeram utilizaram conflitos e insatisfações genuínas da população como pano de fundo à captura dos afetos, a serviço do mascaramento de nossas desigualdades e fomentando a criminalização e desconfiança na política e em seus representantes. Nesta ‘derrama tramada’, na contramão da história, entre avanços e recuos, o capitão vai ganhando terreno e costurando um programa autocrático e retrógado que produziu e acirrou fissuras presentes no seio de nossas forças sociais (religiosos e neopentecostais, minorias socioculturais, elite colaboracionista e movimentos sindicais e ambientalistas).

Por tudo isso, longe de estar morto, Bolsonaro é agente aglutinador de perigosa pauta autoritária e extremista que ameaça toda a sociedade brasileira e o seu entorno. Mesmo com o fracasso de sua gestão e as evidentes mazelas no campo da economia e da saúde, mesmo dispondo de menor intenção de votos que Lula, o primeiro colocado. Enfim, contornando a sua taxa de rejeição (de 65 a 59%) e oscilando entre 25 e 30% da preferência do eleitorado, o capitão manteve-se à frente daqueles candidatos ao concorrido título de campeão da Terceira Via.


Os Afetos Tristes: ordem ameaçadora e antipetismo exaltado


Uma vez no comando da máquina administrativa, Bolsonaro foi acumulando poder e avançando como representante-mor do ‘novo’ radicalismo de direita. A partir daí, foi deixando menos visível certos apoios, interesses e poderes de parte das oligarquias e elites dominantes que cimentaram sua candidatura e vitória. Neste curso, segue fortalecendo outros aliados ávidos de entrar mais decisivamente na maquinaria do poder. De maneira estratégica, inflama a pauta conservadora de costumes. Mais do que uma tática de campanha (desde que eleito nunca deixou de estar em campanha, falando para uma plateia específica, o ‘cercadinho’), garante assim a mobilização e apoio eleitoral de sua base fiel. O que considera suficiente para projetá-lo para o segundo turno da disputa eleitoral.

Firme em tal propósito, a máquina bolsonarista aposta (novamente) no campo dos afetos como eixo aglutinador à identificação e disposição cívica. Seja no plano doméstico (na família e nos circuitos sociais), seja em nível público (nas ruas, nos partidos, nas associações de classe e nas corporações técnicas, e no voto), ânimos e animosidades são capturados.

Na campanha de 2018 foi explorado, primeiramente, importante sentimento coletivo: a ideia de ‘ordem’, que tem como base apologias negativas e exaltação de crises, riscos e delirantes ameaças sociais. Tal afeto foi acionado à captura de ‘corações e mentes’, ao explorar e se nutrir do ambiente de medo diante de processos presentes em nosso cotidiano (insegurança pública, criminalidade violenta, subversão de valores morais e liberalização de costumes). Em paradoxo aparente, a máquina bolsonarista imprimiu práticas extremamente violentas e autoritárias como justificativa para garantir esta desejada ‘ordem social’: ameaças de golpe, repressão policial, armamento de grupos, violência política, perseguição e criminalização de instituições, políticos, pessoas e coletivos, acordos com milicianos e crime organizado, eliminação de adversários, dentre outras.

Um outro afeto ativado em prol do projeto ultradireitista foi o ‘antipetismo’. De forma política e ideologicamente construída, serviu de contraponto e foi explorado mediante a inegável força representativa do Partido dos Trabalhadores e de seus governos. Desde seu nascimento, intrinsicamente atrelado a imagem de Lula, a potência e combatividade do PT há muito ameaçavam/ameaçam os setores privilegiados. Desde o ‘Mensalão’ (2005), potencializado pela sanha lavajatista, iniciada em 2014, o Partido, seus representantes e simpatizantes foram convertidos em ‘bode expiatório’, causas de todos os males e desgraças nacionais.

A este respeito, a socióloga Sabrina Fernandes3, sintetiza as principais motivações que embasaram o antipetismo: “a ideia de que o PT é uma ‘comunidade comunista’, embora seja um partido de esquerda moderada, orientado pela perspectiva de ‘conciliação de classes’; a noção de que o ‘PT é o inventor da corrupção no Brasil’, embora saibamos que a corrupção brasileira é sistêmica; a luta contra as políticas redistributivas e de inclusão social do PT”. Mais ainda, Fernandes aponta razões econômicas, já que “suas políticas inclusivas alteraram o perfil do mercado de trabalho brasileiro”. Complementa-se a isso, a ameaça concreta no ‘bolso’ da classe média, devido à valorização do salário mínimo (272,50 USD, à época) e à regulamentação das empregadas domésticas (Lei Complementar 150, de junho de 2015).

Junto à exploração das ideias de ordem e demonização do PT, sistemática e minuciosamente, foram canalizados outros sentimentos como meio e método principais à ação política: desalento, humilhação, desgosto, mágoa, frustração, inveja, desassociação, violência e ódio, por exemplo. De forma radicalizada, discursos e práticas de Bolsonaro e sua trupe promoveram o caos, instabilidade, desestabilização e ameaças constantes, inclusive, apelando à eliminação física e simbólica de adversários políticos e ideológicos. No limite, a máquina bolsonarista elegeu a gestão da vida e da morte do estado e de brasileiros ao decidir, impiedosamente, “aqueles que podem e devem morrer; e os poucos que devem ser poupados e podem desfrutar de instituições, bens e serviços públicos”.

Mentiras, hipocrisias e fake news foram intoxicando a urdidura social com sistemáticas porções de ódio. Nada espontânea e ‘irracional’, esta metodologia tem nome e endereço certo. É uma versão doméstica peculiar do que estudiosos identificam como ‘necropolítica’, que se alimenta de uma violência estrutural subjacente a nossa experiência social. Um fenômeno mundialmente preocupante que emerge face ao cansaço e impotência diante das questões sociais, à falência da representação política e ao desastre do modelo econômico. Algo que aqui possui atributos próprios, fortemente marcado por dinâmicas locais: classismo, racismo, misoginia, homofobia, ódio à diversidade, desprezo e extermínio de vulneráveis, depredação e ataque ao meio ambiente, dentre tantas outras perversões.

Por tudo isso, é realmente um equívoco apostar no Bolsonaro repaginado, travestido em candidato da direita tradicional e da centro-direita que no exercício do cargo poderia ser controlado pela própria institucionalidade democrática. Alguém que, uma vez ‘arrumada a casa’, e eliminado o inimigo (Lula/PT), restabeleceria a ‘paz e a prosperidade’ necessárias ao país e à nação. Quem garantiria aquilo que jamais poderia, crescimento com viés democrático. Definitivamente não! Se observarmos seus mais de 30 anos de vida pública, é impossível associar tal personalidade à democracia. Nunca!

Aos muitos hoje declarados surpresos, arrependidos e desiludidos com esse burlesco personagem, recordamos que, definitivamente, ele não se elegeu por e pelo compromisso de sanar mazelas da democracia, e nem de pôr fim às trapaças e dinâmicas da velha política. Tampouco, sua campanha eleitoral teve (e tem) como pauta adotar e fazer-cumprir um plano de crescimento e desenvolvimento nacional. Ao contrário, em continuidade com o ideário ‘Deus, pátria, família’, Bolsonaro avança com suas ‘botas’. Portanto, é ingênuo (absurdo ou mesmo ‘de má fé’) esperar dele o cumprimento mínimo de qualquer protocolo inerente à institucionalidade democrática.

Apesar de nosso desejo e torcida, no campo da política, tudo parece ainda imprevisível, tomado por muitos afetos tristes (insegurança, medo, riscos, ameaças, perdas, lutos, ressentimentos e raivas). Mesmo derretido, tendo suas bases eleitorais corroídas e quantitativamente menor do que já foi, Bolsonaro continua demonstrando força. Por parte de menos fiéis, porém muito barulhentos, continua sendo chamado e exaltado como ‘mito’. Enfim, a capacidade de penetração e aceitação deste figurante nefasto demonstra a organicidade dele como, hoje, o maior representante de uma subterrânea e perigosa direita popular, cujo tamanho mostra-se bem maior que a própria ‘criatura’.


Mito de pés de barro: ideias projetadas e significados atualizados


Em clima de deboche e desprezo (e mesmo de ‘já-ganhou’), uma parte de nós subestima o perigo e a potência de Bolsonaro e do movimento bolsonarista no ataque ao povo brasileiros e suas instituições. Para muitos, o personagem (Bolsonaro) e o fenômeno (bolsonarismo) misturam-se numa mesma coisa como uma coisa só. Mais ainda, ambos são caricaturados como fenômenos passageiros; ou mesmo, reduzidos a expressões de ignorância e estupidez de fundamentalistas radicalizados e de setores populares cristão-pentecostais, pejorativa e desdenhosamente alcunhados de ‘gado’. “Devagar com o andor, que o santo é de barro”; afinal, são muitos motivos para termos cautela.

No pleito eleitoral o capitão pode ser derrotado (Oxalá nos proteja!), já o bolsonarismo parece bem mais complicado. Lamentavelmente se tem mitigado aspectos simbólicos que lançam luz sobre ambos os fenômenos. Aqui, num exercício de imaginação, nos colocaremos diante, porém mais além dos signos, para explorar significados subjacentes. Precisamos vasculhar certas imagens e representações implícitas às figuras de ‘criador’ e ‘criatura’: Bolsonaro e a parte malcheirosa de um Brasil desnudado por ele.

Um primeiro exame é saber por que - depois de tanto despreparo, incapacidade e incompetência - o atual (des)presidente continua sendo chamado por seu eleitorado fiel de ‘mito’. Assim, escapamos da armadilha fácil de simplificar certos significados, de perder fôlego na crítica e, pior ainda, de cair nos mesmos erros. Muitos apontam a multiplicidade de juízos contidos na noção de mito e chamam atenção ao ambiente em que o termo (re)surge - ou seja, seu uso e eficácia prática. Como sabemos, ideia e contexto são dimensões decisivas para compreender dada nominação.

Um sentido mais corriqueiro de ‘mito’, no seio das massas, faz alusão a algo desmedidamente positivo e arrebatador, semelhante ao sentimento fanático que se nutre por ídolos, profetas, artistas ‘pops’, heróis, guias, mestres e gurus. Um outro significado, no senso comum e entre setores mais escolarizados, refere-se a atributos extremamente negativos, associados à falsidade, mentira, burla, engano, ‘falsa ideologia’. Num distinto patamar, em âmbito existencial e filosófico, o termo emana imagens elucidativas daquilo que nós, enquanto sociedade, efetivamente somos. Acerca deste último nível, faremos uma pequena digressão para indicar novos significados à aparente excentricidade de Bolsonaro e do movimento bolsonarista.

Especialistas no tema interpretam o mito como narrativa que conta uma história atemporal, um tempo circular, primordial, no qual são registrados dados, fatos e acontecimentos extraordinários e fundantes de determinada experiência coletiva. De forma exemplar, tais eventos são resgatados e interpretados à luz do presente imediato; ou seja, a partir de situações concretas e reais. Não se trata de saber se o que foi/é dito é verdade ou mentira, realidade ou fantasia. Não se trata de parecer racional ou irracional, crível ou não, pois o mito tem organicidade em si mesmo. Portanto, possui uma lógica explicativa própria que, através de linguagem alegórica, conta a forma como as coisas se originaram, como se desenvolveram e como elas são.

Neste ‘enquadramento’, Bolsonaro e bolsonarismo estruturalmente representam ocorrências que explicam parte do que nós somos (e/ou pensamos ser) como nação (povo, país e coletividade). Ambos revelam nua e cruamente a natureza da elite dominante que controla nossos poderes públicos. Igualmente, tais fenômenos desnudam a forma como o povo brasileiro é compreendido, tratado e abandonado a sua própria sorte. Mais ainda e tragicamente, demonstram a maneira como este povo se auto representa (Sousa, 2017 e 2019)4.

Desde a origem até os dias atuais, o Brasil instituiu-se como sociedade altamente cindida, marcada de norte a sul pelo sistema escravocrata, um dispositivo organizador e mediador de nossas interações socioculturais. Acerca disso, o sociólogo Jesse de Souza aponta “a escravidão como a principal instituição que revela e explica o Brasil, ontem e hoje. Uma força estrutural e estruturante, responsável não apenas por forjar as fortunas de nossas elites econômicas e políticas; mas também, por formatar o corpo e a alma de todos nós brasileiros, conscientes ou não”. Consideramos importante apreender o dinamismo e a atualização dessa estrutura primordial para melhor compreender tanto o pacto das elites com Bolsonaro, bem como a aderência ao discurso e às práticas bolsonaristas por parte significativa dos setores médios e populares.

Desde tempos primórdios, um substrato classista, racista e patriarcal informa e performa certas práticas e representações vigentes em nossa experiência sociocultural. Ao longo do processo histórico brasileiro, nossas relações (pessoais e domésticas, e/ou coletivas e públicas) têm como base de sustentação uma sociedade profundamente desigual e hierárquica. Aqui, seu fundamento básico, o sistema escravista moldou nossa sociedade como profundamente racista, desigual, arbitrária, autoritária e hierárquica, sustentada sob processos ardilosos e nefastos à experiência coletiva - como a violência e violação de direitos, a negação e sujeição do trabalho, o saque e apropriação da coisa pública, a desqualificação e depreciação do sistema educativo de massas, a desvalorização e criminalização da cultura popular, a exclusão e marginalização do povo e o ódio ao pobre (Sousa, idem).

Em particular, os setores populares (e tudo que os represente e defenda) têm sido abandonados à própria sorte, vistos como potencial ou literalmente ‘classes perigosas’ - pobres, pretos, migrantes, indígenas, ribeirinhos, e muitos outros -. Dentre tantos desdobramentos, tal dinâmica tem fortalecido, atualizado e promovido algo elementar à experiência brasileira que atravessa espaços e tempos históricos: o ‘ódio de classe’, o ‘ódio e desprezo aos pobres’ e a sujeiçao deles a inúmeras flormas de violência estrutural (Sousa, idem).

Nascido e crescido nos limites desta representação, o povo brasileiro tem sido vítima de muitos algozes e de si mesmo. Uma parte expressiva destes muitos marginalizados capitula, vítima de corrosivo ressentimento de classe e da falta de perspectiva de mudança social. Consciente ou inconscientemente, se tornam presas fáceis de dispositivos letais, como a demonização da política e políticos e a criminalização daquilo que é diferente de si; ou seja, do diferente, do diverso, do divergente, do ‘outro’ (Sousa, idem).

Graças à adesão desse público (‘alvo’), desviado do orgânico vínculo com Lula, Bolsonaro hoje pode ousar como ‘representante autorizado’ de parte dos setores populares, promovendo uma pauta social que se opõe e rejeita mudanças - inovações morais, sociais, políticas, religiosas e comportamentais. Mais ainda, esta relativa capitulação popular autoriza o ‘mito’ a executar uma pauta econômica ultra neoliberal, socialmente indefensável, mesmo sendo comprovadamente inábil e desqualificado para gerir nossa crise econômica, política, social e sanitária. E, mais ainda, permite-lhe propor e controlar uma agenda comandada de cima, que recai direta e negativamente sobre a vida da maioria dos brasileiros. Portanto, a adesão à caótica gestão e às absurdas fake news bolsonaristas só é possível porque há aderência efetiva dessas práticas (receptividade) em muitos corações e mentes.

Entre práticas e representações atávicas, fato é que Bolsonaro foi e é o ‘pior’ (des)governo do Brasil, cujo único mérito foi nos colocar diante de nós mesmos. Falsa surpresa, falsos paradoxos e falso mito, à parte, o atual chefe do planalto é aquilo que sempre foi. Ele representa a parte ‘mais ruim’ daquilo de pior de nossa experiência coletiva.

Oxalá nos proteja e nos dê paciência e sabedoria para saber que nosso pandemônio não durará para sempre, pois ‘não há mal que nunca passe, nem doença que nunca cure’. Afinal, como nos conta a história de Nabucodonosor, Bolsonaro é, sobretudo, um ‘mito de pés de barro’. Conforme reza a lenda, “o imperador da Babilónia imaginou ser indestrutível uma estátua feita de ouro, prata, bronze, ferro e barro. Todavia, constatou-se que uma simples e pequena pedra destruiria o sonho do rei. Como apontam muitos, a fragilidade do barro ou da argila significa uma clara analogia à ascensão e queda dos poderes”.


Fora Bolsonaro”: mobilização crítica e resistência organizada


Apesar das marcas estruturais e da conjuntura impiedosa que tanto castigam o povo brasileiro, nem tudo é ‘ressentimento anestesiado’. Tantos e diversos têm atuado de forma combativa travando muitas lutas - trabalhistas, antirracistas, antissexistas e ambientalistas -. Portanto, ao longo dos governos Temer e Bolsonaro a maioria dos brasileiros não esteve em sintonia com a ordem vigente, nem tampouco pactuada com os rumos tomados pela política nacional. Desde o golpe de 2016, um número enorme e heterogêneo de pessoas tem ido às ruas para exigir democracia e direitos (“Volta Dilma “, “Fora Temer”, “Ele não”, “Vacina no braço, comida no prato”, “Fora Bolsonaro”, dentre tantos). Esta gama de disputas reconfigura as dinâmicas e o papel das organizações de base popular. Como sabemos, este vaivém entre representação e mobilização faz parte do jogo social. Dito melhor, ele é necessário e constitutivo do mesmo.

Neste jogo Bolsonaro tem sido alvo de críticas incisivas e denúncias internas e internacionais. Como promotor de ataques infindáveis à democracia e aos direitos, o governante vem sendo desmascarado e criticado por muitos e muitas razões, notadamente no âmbito da economia e da saúde. Isto é fato, e contra fatos e números não deveria haver tanta hesitação. Junto à contundente crítica de democratas e progressistas, o chefe do executivo vem perdendo apoio e representatividade também entre aqueles que o elegeram. Para o bem e para o mal, a política não é ‘preto-no-branco’, mas na dança dos números alguns dados parecem indubitáveis. Junto aos omissos, aos aproximadamente 12% de ressentidos, frustrados, bestializados, e aos 13% que circunstancialmente o apoiaram, o (des)presidente conta hoje com grande rejeição da população brasileira (60 a 50%, conforme as últimas enquetes eleitorais, presenciais e remotas). Isto é fato!

Em relação à gestão da crise sanitária, o veredito é implacável. A pandemia é um fato (‘um fato social total’) que expõe a calamitosa capacidade gerencial do chefe do executivo e sua equipe. No conjunto da obra, a constatação de sua incompetência e fracasso está além da negação inicial da doença, do ‘boicote orquestrado à vacina’, das falcatruas, ou mesmo das deliberadas negligências orquestradas em seu governo. Junto a questões objetivas e materiais, uma poderosa dimensão simbólica endossa a indignação de quase todos com as medidas tomadas lá no Planalto. A tragédia das mais de 600.000 mortes (à época) e dos lutos e adoecimentos, literal e simbolicamente, confirmaram a pandemia como um dos fatores determinante de desagregação social (dificuldades materiais, perdas de vidas e de laços sociais, adoecimento físico e psíquico, isolamento e ensimesmamento, desconfiança, medo e insegurança).

Na contramão daquilo esperado, negação, desdém, desprezo, descuido, incapacidade de respostas e promoção da morte foi o que Bolsonaro efetivamente ofereceu. Sem se importar com o fato crucial de que a pandemia é um disjuntor/disruptivo de muitas esferas da vida coletiva que bagunça uma ‘suposta’ sintonia da política. Consequentemente, como um tabu, a atitude de ‘zombar’ da morte é algo socialmente inaceitável porque com “a morte não se brinca”.

Além das mazelas da pandemia em si, a fatalidade do vírus, o atual governo promove o culto e banalização de inúmeros aniquilamentos reais e simbólicos. Um modus operandi que a sociedade brasileira vem assistindo bestificada desde que Bolsonaro assumiu o poder. Nada aleatório, presenciamos hoje um conjunto de mortes dirigidas, autorizadas, deliberadas e gestadas. O capitão é expressão da necropolítica que mira e atira em ‘corpos matáveis’ (pobres, negros, indígenas, ribeirinhos, migrantes, mulheres e LGBTQI+, dentre outros).

Tudo isso concorre para derreter Bolsonaro e associá-lo cada vez mais aos seus piores atributos, indigno da posição que ocupa. Ele vem caindo em descrédito e desgraça, visto como aquilo que realmente é: um ser desprezível, cruel, insensível, mentiroso, ignorante, grosseiro, despreparado, desequilibrado, terraplanista, negacionista, racista, sexista, homofóbico, exaltador e defensor do fascismo e de ditaduras. Como vemos, a lista é vasta e coloca o capitão hoje como ‘o inimigo número um’ do povo, da política, da economia, das artes, da cultura e da ciência. Estes atributos têm produzido novas imagens e sentidos que culminam na união de muitos num uníssono “Fora Bolsonaro!”.

Apesar de seu derretimento, todavia, o jogo não acabou, nossa vitória não pode/deve ser antecipada e, tampouco, o inimigo deve ser menosprezado. No xadrez eleitoral Bolsonaro apoia-se, ao menos, em dois movimentos articulados. Primeiro, na manutenção de uma base de eleitores para inviabilizar o projeto da Terceira Via e garantir seu lugar no segundo turno. Então, com esta conquista parcial se habilitaria e apostaria em seu poder de reaglutinar setores ultradireitistas e conservadores (populares e oligárquicos), neoliberais e centro direita. Por fim, arriscaria em novo pacto para enfrentar o ‘mata-mata’ do segundo round. Nesta jogada, em sua perspectiva, poderia se recompor e ‘fechar’ o cerco para dominar de vez a ameaça de crescimento e combatividade de nossas forças progressistas. Um outro entendimento se em torno do papel de Bolsonaro ao empurrar o jogo para o segundo turno. Menos do que disputar vitória, a eleição em duas rodadas seria uma forma tanto de mitigar o prestígio e popularidade de Lula, quanto de angariar mais pactos e alianças para balizar um futuro governo petista.

Portanto, caros amigos, a campanha eleitoral tem muito a render. No campo das forças progressistas, na luta por nossa democracia com soberania e justiça social, “é preciso estar atento e forte” para evitar a nossa morte há muito anunciada. E, sobretudo, para manter nossa teimosia e resistência em não nos deixar morrer.



III ANO ELEITORAL: temor, esperança e disputas


As crises e transformações do capitalismo global vem colocando em xeque diretamente o padrão de acumulação capitalista e suas consequências dramáticas à estabilidade política e ao desenvolvimento das sociedades. Como visto, articulando conjunturas e contextos, o acirramento das contradições inerentes ao sistema tem concorrido para fortalecer muita contestação, seja no plano social, seja político-institucional. Neste cenário, o Brasil tem lugar singular e o ano que se inicia é bastante peculiar e decisivo. Junto a eventos relevantes - bicentenário da independência formal, centenários de nossa modernista Semana de Arte e do corajoso líder Leonel Brizola, bem como momento de revisão de nossa afirmativa Política de Cotas -, no plano político-eleitoral 2022 é um momento ímpar, polarizado entre fortes ameaças de ruptura e mobilizadas forças progressistas.

Bolsonaro não reúne capacidade nem credibilidade para enfrentar tal contexto, tampouco nossas prioridades como povo, país e nação. Claramente, se mostra incapaz de apresentar respostas efetivas e positivas às agruras que experimentamos nestes tempos difíceis. Pelo contrário, os arroubos e ameaças do capitão favorecem à quebra da solidariedade e dos laços coletivos pelo encolhimento, inversão e rompimento do pacto social que sustenta toda experiência coletiva. De um lado, aposta-se na exacerbação dos conflitos e na cisão do pacto democrático como meio de assegurar a reeleição de Bolsonaro e a manutenção de tudo que ele representa. De outro, defende-se a valorização do bom senso, lealdade e comprometimento com um ‘Brasil de todos’, capitaneada pelo Partido dos Trabalhadores.

Como o maior partido de esquerda da região e como o mais orgânico na trajetória política nacional (maior e mais popular liderança, maior bancada, maior número de filiados, maior número de simpatizantes) o Partido dos Trabalhadores tem sido alvo preferencial de ofensivas e ódio na política. A partir de 2005, com o ensaio do ‘Mensalão’, seguindo com o moralismo da ‘Lava-Jato’, operação iniciada em 2014, e culminando no extremismo bolsonarista, o PT vem sendo golpeado de morte.

Desde a primeira ‘onda rosa’ de governos nacionais desenvolvimentistas latino-americanos, no início deste século, muitos se opuseram aos avanços progressistas no Brasil e no continente. Em particular, Bolsonaro e todos os que o apoiaram/apoiam têm sido incansáveis no ataque às ideias e gestões dos governos petistas (a nível federal, estadual e municipal). Todavia, bravamente, o PT tem se recusado a morrer.

Manobras e manipulações à parte, o ‘real como fato’ se impõe à tentativa ilusionista de criar uma realidade paralela, incapaz de reconhecer a mudança dos ventos. Nestes ‘tempos bicudos’, mais que nunca é imperativo lutar contra o estado de barbárie que se instalou no Brasil, sob o comando de pessoas nefastas e de afetos tristes.

Sem titubeios, um caminho inicial passa por restaurar a imagem positiva do PT e reconhecer o protagonismo do Partido para capitanear nosso combate agônico. Em tempos atuais e imediatos, o Partido ressurge como força e instrumento para repensar e superar o atual padrão acumulativo e as relações que ele engendra. Isto implica em voltar a governar para poder reposicionar o Estado como agente indutor de crescimento com desenvolvimento e restituir nossa almejada Democracia e Justiça Social.


Lula 2022: confiança, experiência e memória


No limite das possibilidades de cada um, vamos travar uma guerra civilizatória para salvar nossa democracia roubada, nossa igualdade desejada e nossos direitos violados. A hora é agora, 2022 é o momento para recuperar ânimo e fé em um mundo e uma vida melhor. Toda luta emancipatória requer coragem, mobilização, compromisso e direção para vencermos a selvageria em que nos meteram.

Nesta luta providencial, uma força arrebatadora há muito ‘emite seus sinais’. ‘Lula Já’ é o grito que reverbera na voz de muitos. Guiado por nossa confiança e credibilidade, pela experiência acumulada em gestões anteriores e pela memória recente da maioria do povo, Lula vem sendo consagrado como capaz de nos fazer voltar a sonhar com “um Brasil feliz de novo”. Essa potente identificação de Lula com o Brasil e os brasileiros é orgânica e transcendente. O ex-presidente se projeta como uma força acima de disputas partidárias, morais, religiosas, que se assenta em nossa experiência recente. Sua coragem, dignidade e seus feitos, colocam-no em lugar único na história de nosso país, povo e sociedade.

Desde meados de 2021, o ex-presidente vem liderando e dominando o contexto político nacional como a principal liderança capaz de restituir crédito à política. Acerca de seu papel peculiar, E. Sader qualifica esse favoritismo de Lula, “sempre acima dos 40%, chegando perto dos 50%, com 40% de apoio em pesquisa espontânea ... Lula já não é apenas um fenômeno eleitoral ... é muito mais que uma candidatura favorita ... É mais do que a única via para o 'Fora Bolsonaro'. Lula é o candidato da democracia, o candidato nacional, o candidato da esperança, o candidato do Brasil” 5.

Igualmente, no cenário internacional, Lula e seus governos têm posição reconhecida e valorizada. Como o mesmo ‘cara’ de antes, umbilicalmente comprometido com as forças progressistas do ‘Sul’ e de outros cantos, onde houver desigualdades, miséria, pobreza, exploração e exclusão de pessoas, povos e natureza. O ex-presidente encarna o estadista do diálogo, da união e da conciliação para uma vida e um mundo melhor para todos, do sul ao norte: pretos, brancos, nativos, ricos, pobres, homens, mulheres, trans, iguais e diferentes. Sem dúvida alguma, junto com poucos, “Lula projeta-se como um grande humanista do século XXI”.


Outros Afetos: esperança, alegria e amor


Como buscamos demonstrar, Bolsonaro recorreu a extremismos e fundamentalismos morais para subir ao pódio, tecendo astutamente uma estratégia discursiva ancorada em ‘corporativismos-familiaristas’, junto à cooptação de personalidades e aparatos institucionais que, teoricamente, deveriam se contrapor e impedir seus arroubos e incompetências. Neste ano eleitoral, novamente, vai recorrer a tal dispositivo e apelar às táticas muito mais espúrias, como espionagem e deep fakes.

Todavia, nossa surpresa e sustos nos deixaram mais preparados. Para muitos o cenário atual nos possibilita sonhar com uma inversão providencial que possa superar objetiva e simbolicamente as (mal)ditas lógicas bolsonaristas. Animicamente, estamos confiantes e dispostos à batalha. Assim como Fênix, estamos renascendo da morte anunciada de forma gloriosa para seguir no sonho de reconstruir e reinventar o Brasil e a nós mesmos.

Conforme colocado, o campo dos afetos é capital à identificação, mobilização e organização política de indivíduos e coletividades. Por isso, precisamos reforçar a centralidade desta esfera simbólica (moralidade e afetividade) à criação, manutenção e renovação dos vínculos entre as pessoas/cidadãos e o político/líder. Neste domínio, necessitamos de uma inversão salutar. Temos muito a colocar no lugar dos afetos tristes e desafetos exaltados (a ordem, o medo, a morte, o ódio, o ressentimento, a inveja e a demonização do outro).

Vamos esbanjar afetos jubilosos, essenciais e restauradores, como a esperança, a alegria e o amor a si, ao próximo e à humanidade em geral. Vamos libertar nossa ‘esperança-criança’, guardada no fundo de cada um de nós, como remédio para nossos desesperos e dores e, também, para os males do mundo.

Igualmente, vamos nos deixar transportar pela alegria, contra a ameaça autoritária e repressora da ordem. Uma ‘alegria-brejeira’ que se manifesta em muitas dimensões - na inversão do tempo ‘ordinário’ para festejar nosso dia, na transgressão da ordem imposta, na sabedoria jocosa para solucionar conflitos e estabelecer novas redes e acordos, no plano pessoal e coletivo.

Por fim, vamos derrotar o ódio sendo conduzidos pelo amor. Um ‘amor-dádiva’ presente em muitas modalidades, formas e possibilidades (“parental, de amigos, físico, platônico, amor à vida, à natureza, aos animais, amor altruísta, amor-próprio, homoafetivo, compassivo”). Sentimento universal, elementar, que alude ao princípio de tudo. Afeto incontornável que se manifesta em qualquer tempo e contexto como uma força que nos protege e cura, que nos guarda e que nos dá aquilo que temos de melhor.

Caminhando lado-a-lado, podemos resgatar parte de nossa dignidade aviltada e de nossa soberania, nosso crescimento sustentável, nossos direitos, nossas paridades e nossa justiça social. Certos de que nesta luta não estamos sós, sob a batuta de Lula e guiados pela esperança, alegria e amor venceremos o medo e seguiremos na busca de um porvir melhor.



IV CONCLUSÃO


Como força aglutinadora de um projeto conservador, gestado dentro e fora de nossas fronteiras, o capitão e sua trupe encarnam o mal e a morte do melhor de nós e de nossa vida política. Bolsonaro e aqueles que o mantêm no poder são imagens acabadas do imperativo de afetos tristes e daquilo que somos diametralmente contra.

Nos limites deste texto discutimos certas dinâmicas e determinados efeitos destrutivos correntes nestes anos de gestão bolsonarista. No quadro geral, o (des)governo Bolsonaro representa a ortodoxia perversa das reformas neoliberais, o assalto e o fim de programas sociais imprescindíveis. Como um projeto protofascista, ele representa o fim de nossa soberania, conquistada por uma política externa independente e altiva pelo alinhamento incondicional com o neoimperialismo norte-americano e subserviência às demais economias centrais, face aos avanços do reacionarismo e ultraliberalismo globais, reprocessados internamente pelas dinâmicas e contradições ‘locais’. Neste cenário interno, o capitão e sua administração significam a ascensão do autoritarismo militar e miliciano, manifesto no armamento de grupos, na dominação violenta e na criminalização dos movimentos sociais e populares. Significam o apogeu do negacionismo piegas e inflado que se coloca contra a ciência e o conhecimento (desde a negação da pandemia e vacinas à governança climática e preservação ambiental). Significam a covarde desvalorização e ataque à cultura e às artes.

Hoje enfrentamos, portanto, o desafio titânico de lutar por nossos sonhos para construir um país e uma humanidade melhor. Temos muito a defender e fortalecer: democracia, igualdade e justiça social, no Brasil e em outros cantos do mundo. Ao menos nos limites domésticos, dispomos de armas. Então, caros amigos, um brinde à luta e à chegada de nossa primavera, anunciada pela esperança, pela alegria e pelo amor. Feliz Lula 2022!


Barcelona, agosto de 2022.


1 Consultora Ad Hoc, vinculada ao Centro de Estudos de Discurso (Intercâmbio técnico-acadêmico Brasil GEMAPP/CDS e Gestão Administrativa) e Membro do Núcleo do PT Barcelona.

2 Um coletivo aberto, circunscrito a toda jurisdição de Barcelona; lugares onde há brasileiros que votam em Barcelona (Girona, Tarragona, Baleares, Países Bascos, dentre outras).

3 FERNANDES, Sabrina. Sintomas Mórbidos: A Encruzilhada da Esquerda Brasileira. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.


4 SOUZA, Jesse. A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Ed. Leya, 2017 e SOUZA, Jesse. A guerra contra o Brasil. como os EUA se uniu a uma organização criminosa para destruir o sonho brasileiro. Ed. Estação Brasil, 2019.

5 SADER, Emir, HÁ UMA VONTADE NACIONAL EM TORNO DE LULA, publicado em Carta Maior, 13/01/22.


Patrícia Gouveia é Doutora em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/IFCS/UFRJ).
Atualmente é Membro do Núcleo do PT de Barcelona e vinculada ao Centro de Estudos de Discurso (CDS - Intercâmbio técnico Brasil).
Desde 2003 é Coordenadora Geral do GEMAPP: Grupo de Elaboração, Monitoramento e Avaliação de Projetos Sociais e da respectiva Linha de Pesquisa ‘Experiência, Memória e Exclusão’.
No período de 2003 a 2016 foi Professora Visitante e Consultora Ad Hoc dos Programas de Pós-graduação em Economia Doméstica (PPGED) e do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU) da Universidade Federal de Viçosa/Minas Gerais.


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